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Carmen Santos: atriz, diretora, produtora e musa de um cinema brasileiro em formação

13 de julho de 2012

 

A nossa proverbial memória curta nacional costuma nos pregar peças, ás vezes de muito mau-gosto. Falta de memória, aliás, aliada a muita falta de informação. Pouca gente sabe ainda, por exemplo, do pioneirismo do cinema brasileiro que andou quase no mesmo passo de sua própria invenção nas terras francesas, pelos irmãos Lumiére ou pelos norte-americanos.

Não se compara aqui, é obvio, as formidáveis diferenças de estrutura econômica e social. Enquanto em um caso, o cinema é tomado como uma indústria levada a sério e equiparada a uma questão de Estado, por aqui a produção cinematográfica foi sempre uma mescla de teatro mambembe com sacrifícios pessoais de indivíduos ou grupos abnegados. As poucas tentativas de se montar uma verdadeira industria cinematográfica nacional começaram sempre com muita expectativa e esperança, tropeçaram em obstáculos estruturais e acabaram de modo melancólico e lamentável.

O trabalho de mestrado de Ana Pessoa sobre Carmen Santos é uma forma de preencher uma dessas tantas lacunas de memória e conhecimento. Falar sobre sua vida é tratar diretamente sobre a formação, a complexidade, os avanços, e os vários problemas de querer se fazer cinema no Brasil. O título completo do livro “Carmen Santos – O Cinema dos Anos 20” (Aeroplano Editora) é objetivo e direto: impossível falar de um sem tratar do outro.

A portuguesa Maria do Carmo Gonçalves chegou no Brasil em 1912 aos oito anos de idade. Seu pai tinha vindo antes e trabalhava como marceneiro. Em 1919, Maria do Carmo era balconista de uma loja de roupas quando resolveu fazer, junto com dezenas de outras moças, um “test” para “posar” para um “film”. Tinha quatorze anos, era baixinha, magra, olhos grandes e penetrantes e já combinava todos os elementos para a mulher que estava se formando no começo do século. Ana Pessoa capta muito bem toda essa complexidade e contradições de uma menina-adolescente se transformando em adulta em um mundo repleto de profundas modificações:

A adolescente Carmen está construindo sua personalidade quando surge, no plano internacional, a imagem da ‘nova mulher’. A ascensão do modelo da jovem ousada e irreverente confronta o modelo da pureza católica; a expansão da economia de consumo enfatiza a gratificação material e questiona o tradicional ideal de altruísmo feminino; o desejo de ser membro independente e produtivo da sociedade contrapõe-se às restrições de papel de dona-de-casa. As mulheres alcançam, enfim, a esfera publica”.

Ana Pessoa vai construindo, assim, os vários roteiros que perpassam seu livro: a historia do cinema brasileiro na sua fase muda paralelamente à vida pessoal de Carmen e a da própria inserção da mulher na sociedade.

Maria do Carmo passa no teste, é escolhida como atriz principal, batizam seu nome artístico de Carmen Santos, tiram fotos promocionais, fazem uma grande divulgação. O filme acaba não sendo produzido, mas a figura de Carmen já começa a se propagar. Na verdade, ela se revela uma excelente propagandista de si mesma apesar da maior parte dos seus filmes ter fracassado ou nem mesmo ser concretizado. Ela reconhece o poder da mídia, sempre conseguia ser fotografada, entrevistada; a moda das starlets hollywoodianas já começava a pegar. Dessa forma, nos primeiros tempos de sua carreira, ela consegue o inusitado posto de musa do cinema brasileiro sem ter emplacado nenhum filme!

Por outro lado, e quase ao mesmo tempo em que começa no cinema, Carmen conhece Antonio Lartigau Seabra, um rico herdeiro de uma família portuguesa bem ciosa de suas prerrogativas de classe. O casamento está fora de cogitação mas, pelo que a autora transmite, eles parecem não ligar muito para isso. Sua relação dura praticamente a vida inteira (eles acabam casando, mas muito tempo depois) e é com o dinheiro dele que Carmen consegue extravasar toda sua ansiedade em participar do cinema. Inclusive pagando para isso.

Ela, no entanto, não se contenta com uma posição comodista. Dispondo de uma incomum tranqüilidade financeira, com um amante assumido e público e do qual, sem ser casada, tem dois filhos, ela avança: além de ser atriz, ela produzia, dirigia, financiava novos talentos, tentou construir um estúdio cinematográfico próprio, fez uma pequena participação no clássico, antológico e único filme de Mario Peixoto, “Limite”. Participou ativamente tanto na montagem e estruturação de uma mentalidade de cinema no Brasil, na época mudo, quanto foi decisiva na complicada transição para o cinema falado nacional.

Isso, no entanto, já é uma outra história. O mestrado de Ana Pessoa se restringe ao período do cinema mudo e é com pena que vemos o livro acabar abruptamente na metade da década de 30, justamente quando Carmen está se jogando para o seu novo desafio. Até sua morte em 1952, houve muitas outras batalhas.

Apesar dessa sensação frustrante no final, a pesquisa se mostra séria, bem documentada e é recheada de ilustrações, como deve ser qualquer obra que trate de algum tipo de arte visual. Percebe-se bem como deve ter sido difícil trabalhar com a falta de documentação e ausência ou perda de fotogramas, boa parte dos filmes só é conhecida ainda somente por causa das reportagens e entrevistas e uma ou outra fotografia.

É um pouco da nossa memória cultural sendo restaurada.