Glossário macabro da ocupação, 2: “equilíbrio”, “ponderação”, “ver os dois lados”
de Idelber Avelar, do O Biscoito Fino e a Massa
Qualquer bom profissional da área de Letras, com um mínimo de formação em retórica, poderá lhe explicar, caro leitor, como seria relativamente simples escrever um panfleto racista que parecesse “ponderado”, uma monstruosidade pró-Apartheid que soasse “equilibrada”, uma justificativa do colonialismo mais bárbaro que parecesse estar “vendo os dois lados”. Basta ir fazendo um pingue-pongue pretensamente neutro entre verdugo e vítima, e você engana os incautos.
No caso das discussões acerca da catástrofe que assola o povo palestino desde 1948 e, muito especialmente, desde 1967, esses termos, “ponderação”, “equilíbrio”, constituem a faceta mais perversa do glossário macabro. O nosso jornalista “ponderado” dirá: sim, é verdade que Israel usa força desproporcional, mas o Hamas provocou com os foguetes, omitindo que a “trégua” — e eu já expliquei aqui e aqui porque uso aspas nesse termo – foi rompida no dia 04 de novembro por Israel, com uma invasão seguida de sete assassinatos. O jornalista “equilibrado” dirá: sim, é verdade que os israelenses estão bombardeando Gaza por motivos eleitorais, mas o Hamas não é muito melhor, omitindo o fato de que quando a liderança inconteste dos palestinos era a secular OLP de Arafat, a política de extermínio e desumanização de Israel era absolutamente a mesma. Ou seja, como já explicou a especialista Jenniffer Loewenstein, o Hamas não tem nada a ver com o bombardeio a Gaza. Qualquer liderança que os palestinos construíssem, e que não compactuasse com sua escravização, estaria sofrendo o mesmíssimo massacre.
Nada tenho contra quem escreve sobre o tema com temperatura menos fervente que a minha. Mas não é essa temperatura que determina a forma como avalio o texto. Julgo-o, principalmente, por sua determinação em buscar a verdade. E o filistinismo da “ponderação” muitas vezes não está nem um pouco interessado na verdade, e sim em parecer “equânime” e bonitinho.
Há muita gente bem intencionada que acredita nessa história de “ver os dois lados”. Em qualquer conversa minimamente civilizada, alguém que se propusesse a estudar o nazismo ou o Apartheid “vendo os dois lados” seria ridicularizado. Mas ante a catástrofe palestina, esse filistinismo pretensamente neutro tem ampla circulação. Há jornalistas que, presenciando o nosso horror ante a chacina em Gaza, falam de “indignação seletiva”. Ora, o que teríamos que fazer para que nossa indignação não fosse “seletiva”? Chorar pelos soldados israelenses que estão com as unhas encravadas?
Uma vez, convidei um defensor das chacinas israelenses a uma conversa sobre o monumental trabalho historiográfico de Ilan Pappé, que demonstra a expulsão, o confisco e a política explícita de limpeza étnica contra os palestinos, tudo exaustivamente documentado. A resposta dele foi que leria o livro de Pappé tendo ao lado um texto de Alan Dershowitz. Em qualquer Faculdade de História minimamente séria, tal justaposição seria motivo de gargalhada ou ridicularização. Você não justapõe o trabalho de um historiador que passou anos desenterrando os fatos aos escritos raivosos de um ideólogo pró-Ocupação. Se você nunca leu Pappé ou Dershowitz, imagine que um historiador brasileiro propusesse um curso sobre a ditadura militar, utilizando as pesquisas de Elio Gaspari e Jacob Gorender, e alguém dissesse que para que o curso fosse “equilibrado”, seria necessário incluir o Manual de OSPB da ditadura militar.
É esse filistinismo pretensamente neutro que grassa sobre o sangue do povo palestino.
Por isso, o Biscoito Fino e a Massa trabalha com um axioma bastante simples: ante a barbárie inominável, ante o crime contra a humanidade, qualquer “ponderação” entendida nos termos acima é um gesto de cumplicidade com o verdugo. Por isso, aqui no Biscoito não há “ponderação”. Por isso, aqui não há “dois lados” porra nenhuma. Nós temos um lado: a busca da verdade. E em épocas de bárbarie, a verdade costuma estar do lado das vítimas.
in O Biscoito Fino e a Massa

TEMPO DOS VIRTUOSOS
9–01–2009
Gideon Levy, no Haaretz (Tel Aviv, 9 de janeiro)
Essa guerra, talvez mais que as anteriores, está expondo as veias profundas da sociedade de Israel. Racismo e ódio erguem a cabeça, a sede de vingança e de sangue. A “tendência do comando” no exército de Israel hoje é matar, “matar o mais possível”, nas palavras dos porta-vozes militares na televisão. E ainda que falassem dos combatentes do Hamas, ainda assim essa disposição seria sempre horrenda.
A fúria sem rédeas, a brutalidade é chamada de “exercitar a cautela”: o apavorante balanço do sangue derramado – 100 palestinos mortos para cada israelense morto é um fato que não está levantando qualquer discussão, como se Israel tivesse decidido que o sangue dos palestinos valesse 100 vezes menos que o sangue dos israelenses, o que manifesta o inerente racismo da sociedade de Israel.
Direitistas, nacionalistas, chauvinistas e militaristas são o bom-tom da hora. Ninguém fale de humanidade e compaixão. Só na periferia ouvem-se vozes de protesto – desautorizadas, descartadas, em ostracismo e ignoradas pela imprensa -, vozes de um pequeno e bravo grupo de judeus e árabes.
Além disso tudo, soa também outra voz, a pior de todas. A voz dos cínicos e dos hipócritas. Meu colega Ari Shavit parece ser o seu mais eloquente porta-voz. Essa semana, Shavit escreveu neste jornal (”Israel deve dobrar, triplicar, quadruplicar a assistência médica em Gaza” – Haaretz, 7/1): “A ofensiva israelense em Gaza é justa (…). Só uma iniciativa imediata e generosa de socorro humanitário provará que, apesar da guerra brutal que nos foi imposta, nos lembramos de que há seres humanos do outro lado.”
Para Shavit, que defendeu a justeza dessa guerra e insistiu que Israel não poderia deixar-se derrotar, o custo moral não conta, como não conta o fato de que não há vitória possível em guerras injustas como essa. E, na mesma frase, atreve-se a falar dos “seres humanos do outro lado”.
Shavit pretende que Israel mate e mate e, depois, construa hospitais de campanha e mande remédios para os feridos? Ele sabe que uma guerra contra civis desarmados, talvez os seres mais desamparados do mundo, que não têm para onde fugir, é e sempre será vergonhosa. Mas essa gente sempre quer aparecer bem. Israel bombardeará prédios residenciais e depois tratará os feridos e mutilados em Ichilov; Israel meterá uns poucos refugiados nas escolas da ONU e depois tratará os aleijados em Beit Lewinstein. Israel assassinará e depois chorará no funeral. Israel cortará ao meio mulheres e crianças, como máquina automática de matar e, ao mesmo tempo, falará de dignidade.
O problema é que nada disso jamais dará certo. Tudo isso é hipocrisia ultrajante, vergonhoso cinismo. Os que convocam em tom inflamado para mais e mais violência, sem considerar as consequências, são, de fato, os que mais se auto-enganam e os que mais traem Israel.
Não se pode ser bom e mau ao mesmo tempo. A única “pureza” de que cogitam é “matar terroristas para purificar Israel”, o que significa, apenas, semear tragédias cada vez maiores. O que está sendo feito em Gaza não é desastre natural, terremoto, inundação, calamidades em que Israel teria o dever e o direito de estender a mão aos flagelados, mandar equipes de resgate, como tanto gostamos de fazer. Toda a desgraça, todo o horror que há hoje em Gaza foi feito por mãos humanas – as mãos de Israel. Quem tem mãos sujas de sangue não pode oferecer ajuda. Nenhuma compaixão nasce da brutalidade.
Pois ainda há quem pretenda enganar todos todo o tempo. Matar e destruir indiscriminadamente e, ao mesmo tempo, fazer-se de bom, de justo, de homem de consciência limpa. Prosseguir na prática de crimes de guerra, sem a culpa que os acompanha sempre. É preciso ter sangue frio.
Quem justifica essa guerra justifica todos os crimes. Quem prega mais guerra e crê que haja justiça em assassinatos em massa perde o direito de falar de moralidade e humanidade. Não existe qualquer possibilidade de, ao mesmo tempo, assassinar e reabilitar aleijados. Esse tipo de atitude é a perfeita representação das duas caras de Israel, sempre alertas: praticar qualquer crime, mas, ao mesmo tempo, auto-absolver-se, sentir-se imaculado aos próprios olhos. Matar, demolir, espalhar fome e sangue, aprisionar, humilhar… e sentir-se bom, sentir-se justo (sem falar em não se sentir cínico). Dessa vez, os senhores da guerra não conseguirão dar-se esses luxos.
Quem justifica essa guerra justifica todos os crimes. Quem diz que se trata de guerra de defesa, prepare-se para suportar toda a responsabilidade moral pelas consequências do que faz e diz. Quem empurra os políticos e os militares para ainda mais guerra, saiba que carregará a marca de Cain estampada na testa, para sempre. Os que apóiam essa guerra, apóiam o horror.
* tradução: Caia Fittipald
in AMALGAMA
Comentários