Dois textos contra o abismo

Há uma frase muito otimista e bem conhecida, propagada e clichêzada, embora talvez não tão bem compreendida, que diz, mais ou menos, de que deve-se tomar cuidado ao contemplar o abismo, pois o abismo bem pode contemplar a você. O otimismo parte da premissa (ou da esperança) de que há momentos em que o abismo não está fazendo exatamente isso o tempo todo.

Não consigo compartilhar desse otimismo. O abismo faz parte de nossa existência; vivemos, toda a humanidade, sempre nas bordas do buraco negro, caminhamos na fina linha da navalha, suando para que não cortemos os pés durante a caminhada. É frequente, e natural, fecharmos os olhos para fingir que a imensa feiura não existe (em modo 1 de proteção, de tentativa de sobrevivência), mas quase sempre o abismo escancara-se, deixando-nos boquiabertos com sua profundidade, da qual nunca, nunca, vemos o limite.

O esgoto jorrado por ações e palavras por uma juventude protofascista paulistana; os ataques homofóbicos desferidos por tristes criaturas vazias (que não têm noção de que sua raiva por homossexuais é uma forma de recalque de sua própria não-assumida homossexualidade); os covardes machistas e misóginos que descarregam suas frustrações em pessoas (por enquanto) mais fragilizadas; a repressão às vezes encolhida, desesperada para se manifestar e que, quando explode, expõe a surpreendente finura de uma fachada dita democrática; a onipresente manipulação midiática e a obscena margem de lucros dos banqueiros; a repugnante hipocrisia de uma sociedade que se diz a favor ‘da vida’ e contra o aborto quando, na prática e de verdade, é conivente com uma situação de assassinato em massa de mulheres que se entregam, e morrem, nas mãos de açougueiros… todos estão interligados; nada disso surgiu de um instante, ou de um ano, ou de dez anos, para o outro, nem com a eleição da Dilma para a presidência, nem com a divulgação da doença do Lula.
Portanto, a resistência (qualquer tipo de resistência) não é para cobrir o abismo (posto que impossível), mas sim de tentar manter a sanidade. O equilíbrio no fio da navalha.

Nos últimos dias, com o lamaçal levantado pela enxurrada de ódios, amarguras, e agressividades, e a quantidade portentosa de besteiras e bobagens ditas (e escritas e televisionadas e twitadas e facebookadas) por todos os lados, estava meio díficil saber se já não havíamos caído direto no abismo, em queda livre. Neste torvelinho dos assuntos que mais foram discutidos, incompreendidos, agredidos e rebatidos dos últimos tempos, dois textos, dois testemunhos, surgiram, impactaram e me desconcertaram. Emocionam e fazem pensar. Provam que ainda é possível, sim, encarar o abismo, com lucidez, com coragem, convicção e beleza. Merecem ser lidos, como há muito tempo eu não pensava que aconteceria mais.

Acredite em mim: não é fácil me desconcertar.

A minha doença não me define, porque eu não deixo. Ela gostaria muitíssimo de fazê-lo, mas eu não deixo. Fiz um combinado comigo mesma: essa merda vai ter 30% da atenção que ela demanda. Não mais do que isso. E segue o baile. Mas segue diferente, confesso. Segue com menos energia e mais remédios. Segue com dias bons e dias ruins – e inescapáveis internações hospitalares.”

Nina Crintzs – “Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto


Noutro sentido, a Cidade Universitária é parte da cidade de São Paulo, onde todos podem circular, inclusive PM’s e bandidos. Não é, por definição, uma bolha, isolada do resto da sociedade, embora as políticas de fechamento do campus à comunidade aos finais de semana e feriados e a cegueira de muitos de seus centros de pesquisa em relação à sociedade que a sustenta, têm levado a isso. Assim, a polícia pode e deve fazer policiamento, como deveria fazer na cidade inteira, para evitar roubos, mortes e estupros, infelizmente cada vez mais comuns no campus Butantã. Isso não está sendo proibido, nem questionado, até porque seria inconstitucional. A questão é, quando se instalam efetivos permanentes no campus, a população local, em vez de protegida, passa a ser vigiada e seus atos, criminosos ou não, passam a ser suspeitos.”

Fernanda Sposito “Porque sou contra a presença da PM do Campus da USP (e de qualquer outra universidade)

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2 Comentários em “Dois textos contra o abismo”

  1. Paula Klaus Says:

    Que bom que você está desconcertando Claudinei querido! Tô com saudades… quando nos vemos??? (é uma intimação, aliás)

    beijos!

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  2. Fernanda S. Says:

    Confesso que fiquei surpresa com a repercussão e o acolhimento que meu texto teve. Foi escrito num ímpeto, depois da segunda pessoa ter me perguntado sobre o tema. Nem achei que o texto estava bom, claro, objetivo. Achei que ainda havia furos, que os críticos podiam derrubá-lo. Minha surpresa foi que além das ideias, as pessoas vêm dizendo que é um bom texto…
    Também vivia esta coisa: tanta merda acontecendo, não vou gastar minha sensibilidade e tempo respondendo a estes ataques cada vez mais frequentes, que parecem que nos esmagam. Mas de repente, pessoas que não tem nada a ver com o universo uspiano, que querem saber por que penso diferente do que eles veem na mídia, resolveram me ouvir. E aí, não pude me calar.
    Sabe que achei que este texto jamais te tocaria? Achei que você já viu este filme milhões de vezes, opressão contra os movimentos sociais, criminalização do movimento estudantil, fascismo de novos governantes etc. Achei que você acreditava que a argumentação era um caso perdido, que valeria a pena pegar em armas e só a revolução salva.
    Enfim, fiquei emocionada que pudemos estar irmanados nesta luta. Sabe que achei que você ia ficar bravo? “Não tem tempo para escrever sobre o cinema argentino, mas arruma pra falar desta velha luta dos estudantes da USP?”
    Obrigada, amigo. Não disse aquilo por demagogia, você é realmente um mestre, que me desconcertou em 1998 e vem me ensinando muito desde então. Acho que só pude escrever este texto baseado no seu estilo.
    Abraços e até hoje à noite

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