
‘Neonomicon’chega ao Brasil carregada de polêmicas, críticas, expectativas frustradas e considerações ácidas sobre uma suposta decadência criativa de Alan Moore. Mesmo os elogios e as críticas positivas são acompanhados por várias ressalvas e o entusiasmo nunca é muito profundo. O embaraço ficou um tantinho maior quando o próprio autor disse que escreveu ‘Neonomicon’pelo dinheiro, por conta de umas dívidas apertadas com o imposto de renda (e mesmo que ele enfatize que isso em nada influiu na seriedade de sua escrita e no seu compromisso de entregar um bom trabalho, em geral as pessoas só se lembram da primeira metade da frase).
A narrativa reta e direta pode fazer com que a história pareça simplificada em excesso (embora essa aparente simplicidade esconda subtextos e camadas de representações); a violência sexual explícita e escancarada pode parecer desnecessária e exagerada ou deslocada (o que ajudou a criar o clima de choque e o sentimento de repulsa de leitores norte-americanos); os elementos do universo do escritor H. P. Lovecraft podem ter sido desviados e apropriados de forma indevida ou, conforme o costume de Moore, livre e pessoalmente adaptados. Para variar, mesmo em suas obras menores, ele consegue causar sensação, e o repúdio ou admiração são tomados como paixões sem gradações.
Acontece que Alan Moore, mesmo quando erra, mesmo nos erros monumentais, ainda consegue ser o melhor escritor de quadrinhos da História.
–
Em 2003, a editora independente de quadrinhos Avatar Press, conhecida por sua produção alternativa de trabalhos que fogem do mainstream e por não impor nenhuma trava ou limites aos seus autores, adaptou um conto de
Moore, “O Pátio”(“The Courtyard”) que fazia referência a personagens e ao clima das histórias de H.P. Lovecraft, ambientada nos dias atuais.
Cultos secretos, seres ancestrais e abomináveis, línguas desconhecidas, universos estranhos e psicodélicos, violência, medo, desconhecido, Cthulhu, Akla. Os temas lovecraftianos sempre estiveram presentes na obra de Moore e podem ser identificados ou citados em vários momentos, do ‘Monstro do Pântano’e Constantine a ‘Watchmen’e a ‘Liga Extraordinária’ e assim por diante. Em ‘O Pátio’ o agente federal Aldo Sax acredita que uns assassinos psicopatas e certos cultos satânicos antigos estão relacionados com o tráfico do que pensa ser uma nova e poderosa droga chamada Akla que está circulando em circuitos de bandas de punk rock. A adaptação escrita por Antony Johnston, tendo Moore como uma espécie de assessor literário, e ilustrada por Jacen Burrows, resulta em um quadrinho extremamente denso e pesado, uma curta história em duas partes que deixa o leitor sem fôlego pelos mistérios apresentados e a rapidez da solução. O suspense é construido com cuidado, pela apresentação de personagens estranhos ou diretamente desagradáveis (Aldo Sax é um agente muito inteligente, brilhante até, racista e arrogante) e pela estruturação de um ‘método’de investigação de crimes diversos, em especial aos mais hediondos que, à primeira vista, não parecem ter nenhuma ligação.
O método e a psicopatia sofrem uma brusca virada quando o caso se transforma, de meros assassinatos, para algo mais profundo e aterrorizador. As sutilezas do texto de Moore acompanhadas de perto pela imagem limpa e vibrante de Jacen Burrows funcionam com perfeição: a violência é tangencial, não gráfica, quase nada é mostrado com plenos detalhes, a não ser quando ocorre a explosão psicodélica. No entanto, o impacto é ainda maior por causa do tenebroso e sensacional final-porrada, onde se sabe tudo o que está acontecendo somente pela fala do personagem. De arrepiar, uma das melhores conclusões de narrativa que conheço.
–
Anos depois, a Avatar Press instiga o autor a retornar ao universo lovecraftiano com texto inédito, e Moore, como se disse, aceitou premido por problemas financeiros. Com o mesmo ilustrador Burrows, ‘Neonomicon’torna-se uma minissérie em quatro partes que se configura como uma continuação de ‘O Pátio’ embora sejam independentes e possam ser lidas muito bem em separado.

‘Neonomicon’retoma a história de ‘O Pátio’do ponto que havia terminado. O agente Aldo Sax agora está preso e internado no hospício, ele mesmo considerado um louco homicida psicopata que só se comunica com o mundo externo através de uma língua estranha que ninguém entende. Os agentes Gordon Lamper e Merril Brears assumem a investigação dos assassinatos anteriores, mas frustram-se com a impossibilidade de obter informações de Sax.
Merril, no entanto, tem uma pequena vantagem sobre os demais: ela conhece algo da obra de Lovecraft e percebe que há uma relação forte entre sua literatura, as mortes, a loucura de Sax e os cultos satânicos. Que não seriam satânicos, e sim lovecraftianos, isto é, reunindo fanáticos que acreditavam que seus contos de terror não eram fictícios, que os deuses e monstros primordiais e abomináveis são reais e estão para voltar. Tudo misturado com o clube de punk rock, alucinações, indústria de filmes pornográficos e rituais de orgias e sadomasoquismo. O que os leva a Salem, cidade natal de Lovecraft e palco da maioria absoluta dos seus escritos, e que pode ser o epicentro dos tais cultos.
Não há mais sutilezas aqui. Moore não está interessado, não tem tempo ou paciência para sutilezas e as manda para o espaço. O horror, as mortes, as vísceras, os monstros, estão expostos e escancarados. Tortura, orgias, bizarrice, sangue, estupro, com detalhes e cenas prolongadas. O ritmo e a velocidade da narrativa também estão mais rápidos, sem espaço para elucubrações psicológicas (como havia em ‘O Pátio’, o que pode levar a uma falsa percepção de que o enredo é raso e vazio, repleto de clichês. Os clichês estão presentes, claro, e em alguns pontos ele escorrega feio e emprega umas soluções bem pouco convincentes (como, por exemplo, Merril ser míope induz a algumas situações constrangedoras para o leitor, quando ela está sem as lentes de contato) (ou uma cena de masturbação que parece tirada de sitcom).

O roteiro tem problemas estruturais sérios. As diversas partes avançam aos pulos e o ritmo se quebra em momentos inadequados, em especial da terceira para a quarta parte, o que provoca um vácuo emocional (ainda mais considerando o peso da violência logo antes) transformando o final em um longo e incômodo anticlímax. Dessa forma, a construção dos personagens que havia sido primorosa até então (sentimos empatia e cortesia pelos personagens principais e sofremos por seus problemas, muito diferente do que fora com Aldo Sax: Merril acabou de passar por uma experiência traumática em uma missão anterior; Gordon está passando por um casamento morno e um tanto complicado), tudo torna ainda mais inconsistente (até incomprensível) a reação e o comportamento de Merril depois da cena mais chocante. Não que a tal reação fosse impossível (talvez ‘só’muitíssimo improvável), mas não há tempo (ou disposição) de Moore para torná-la crível.
Por outro lado,
se furos e problemas existem (como realmente concordo), não há como negar que trechos brilhantes também estão presentes e são excepcionais. Os diálogos tem naturalidade e fluência e são repletos de subtextos e camadas. Além do que, mesmo nesse enredo rápido, Moore desfila erudição e conhecimentos pop e de literatura de terror (em especial a de Lovecraft, claro), como de costume. Os personagens têm densidade e, como dito, são bem construídos, mesmo que não tão bem finalizados. O suspense é diluído e espalhado, há mais situações de estranheza e bizarrice do que de medo em si, até o momento quando o verdadeiro terror acontece e a violência irrompe.
Um grande momento (o melhor de ‘Neonomicon’e que por si vale toda a leitura da obra) é o da segunda descida ao corredor subterrâneo do culto em Salem. Aqui sim reconhecemos o Alan Moore escritor de alto quilate, com a escrita envolvente e poderosa, o suspense em alta tensão a ponto de fazer contrair os músculos do corpo. Na primeira descida, o enredo é linear e direto, acompanhamos a linha do percurso subterrâneo e as incertezas são óbvias: sabemos que, em algum ponto do caminho, as coisas ficarão feias e sairão do controle. Da segunda vez, o que poderia ser simples e repetitivo, torna-se tenso e inesperado, a cena é complexa e detalhada, fragmentada e dividida pela fala de Merril e nós mesmos nos espantamos com o espanto dos agentes federais, muito embora tal qual Merril, saibamos exatamente o que será encontrado, e mesmo assim somos afetados.
E é esta cena memorável, já na quarta parte, logo antes da conclusão geral chocha, sem força e anticlimática, que torna ‘Neocomicon’uma obra contraditória, irregular, cheia de falhas e ainda assim imprescindível da lavra de Alan Moore.
–
Um detalhe muito interessante da edição nacional da Panini, além da publicação integral sem cortes em um único volume, é o de terem colocado também ‘O Pátio’ que se tornou uma espécie de prólogo de luxo. Como disse, as duas obras são independentes e não impedem a compreensão se lidas em separado. Mas não deixa de ser um detalhe simpático.

texto publicado originalmente na revista eletrônica de literatura e artes, VERBO 21
Comentários