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Fantasma da Ópera: belo personagem, boa história, péssimo livro

29 de outubro de 2012

 

É interessante observar o porquê do personagem Erik, o Fantasma da Ópera, marcar tanto a cultura pop da mentalidade ocidental. Se não chega a fazer parte do dream team dos personagens de terror como Frankenstein ou Drácula ou até do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, também não faz feio. Ao longo de tantas adaptações cinematográficas, teatrais, musicais, tem demonstrado enorme vitalidade. É um incontestável ícone moderno.

No mínimo, garantiu a vida de seu autor, egresso do jornalismo, no qual já fazia bastante sucesso. Gaston Leroux, com suas reportagens dramáticas e vívidas, fazia o estilo de ‘jornalismo agressivo’, cobria guerras, presenciava batalhas, entrevistava criminosos, e escrevia com bastante colorido e muito maior dramaticidade. Seus artigos eram avidamente esperados; era uma verdadeira celebridade em uma época quando a indústria de informação passava por importantes modificações e modernizações, as quais ele soube aproveitar bem.

Ao começar a escrever ficção, descobriu outro filão que se tornou tão importante (e lucrativo) que decidiu abandonar o jornalismo e se dedicar à literatura em tempo integral. Escrevia livros de terror, suspense, romances policiais, do estilo de Conan Doyle e de Edgar Allan Poe, de quem era um grande admirador, com seus detetives superinteligentes e cerebrais. Poe também era uma inspiração para o gênero do terror gótico, com seus climas tenebrosos, aparições e fantasmas, labirintos obscuros.

É até estranho dizer isso hoje, mas seu “Fantasma da Ópera” não fez tanto sucesso quando foi lançado. Só aos poucos foi sendo conhecido, a ponto de, na prática, eclipsar seus trabalhos anteriores. Hoje em dia, ele é mesmo conhecido (quando lembrado) por causa desta obra.

No entanto, não é um bom livro. Os conflitos são primários e rasos, quase caricatos. O romantismo mais meloso se esparrama por suas páginas, as descrições são fracas, a narração é feita com um tom que imita pesquisas realísticas (uma característica típica sua, pois transpôs seu estilo como repórter para os romances), mas nunca convencem o leitor de sua pretensa veracidade. João Máximo nos diz, em seu prefácio na edição da Ediouro, que consta de Gaston Leroux realmente acreditar em espíritos e fantasmas, e “que tinha a plena convicção de que seu próprio corpo era habitado por um ser espectral de cuja natureza não tinha a menor idéia”.

Além do que, ele se utiliza de alguns fatos reais: a famosa cena da queda do candelabro, que foi tão aproveitada e repetida pelo cinema, realmente aconteceu em 1896, e o prédio do Ópera de Paris chegou a servir como prisão durante a época da Comuna e da Guerra Franco-Prussiana.

A situação fica um tanto mais complicada se compararmos a obra com a de seus ‘irmãos’ mais próximos. ‘Frankenstein’, de Mary Shelley, por exemplo, é uma impressionante obra-prima de terror que contém igualmente uma profunda reflexão filosófica sobre as pretensões e a arrogância da humanidade. Bram Stoker construiu em seu ‘Drácula’ uma criatura que foi a súmula de todos os personagens de terror cultivados na época de sua publicação e dos temores primais que atacam nossa imaginação, além de conter um apelo sensual bem pronunciado, mesmo que nunca explicitado (no livro, bem entendido; o cinema bem fez questão de deixar isso bem claro). “O Médico e o monstroé um belíssimo texto de Robert Louis Stevenson, uma novela curta, quase um conto, que em sua aparente simplicidade provoca uma enorme impressão no leitor, além de discutir questões sobre o Bem e o Mal de uma forma nada convencional.

Leroux não atinge este nível de qualidade. É certo que o cinema ajudou, e muito, em sua projeção (‘O Fantasma da Ópera’ tem sido adaptado desde o cinema mudo; João Máximo fala em dezoito adaptações cinematográficas!), além de retumbantes carreiras de peças musicais da Broadway, adaptações radiofônicas, etc.

No entanto, apesar de tudo o que disse acima, também é verdade que o personagem possui um apelo que dificilmente pode ser explicado somente por conta de suas adaptações. O Fantasma atende sim a profundas fantasias e inclinações românticas; é um personagem romântico, por excelência. A ambientação da Ópera de Paris, o vulto tenebroso e mascarado que exprime sua paixão pela bela e jovem Christine e a ensina a ser uma estrela, a máscara que esconde sua feiura, física e moral, a ambiguidade de sua condição, entre ser um vilão ou uma vítima, um carrasco, um louco ou um grande apaixonado, os subterrâneos onde ele é rei e, ao mesmo tempo, um exilado…

Um grande, portentoso personagem, que se destacou e se fixou em nossa imaginação como bem poucos conseguem fazer, mesmo que a matéria de onde se originou tenha sido tão pobre.

texto revisto e atualizado, publicado originalmente pelo iGLer

Privataria Tucana em vídeo. Próxima CPI?

17 de outubro de 2012

 

Resumo em vídeo das ideias principais do livro “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Jr.. o vídeo é curto, mas deixa entrever a profundidade e a densidade do livro, uma grande lição de história recente.

O livro faz muito mais do que apontar imoralidades: mostra a montanha de dinheiro que foi literalmente roubada dos cofres públicos através das privatizações da época de Fernando Henrique Cardoso, com o auxílio luxuoso de José Serra, mostra quem são os mandantes (os criminosos) e os caminhos dos roubos (os crimes sendo praticados), tudo embasado, demonstrado e provado por documentos.

No entanto, para os meus olhos leigos, talvez não seja a melhor pessoa para avaliar a autenticidade de suas provas. Não sou policial, nem advogado, muito menos juiz (aliás, não sou nem mesmo petista). O que eu quero (e exijo) é que os policiais, os advogados e os juizes façam o seu trabalho, como foram louvados no caso do mensalão.

Agora, a minha grande dúvida ainda é sobre um tal cpi da privataria. Gostaria muito de saber se haveria a mesma diligência, a mesma sofreguidão, o mesmo empenho demonstrados no mensalão petista.

Gostaria de saber se ocorreria igualmente nos momentos finais ou exatamente em período de eleição.

Gostaria de saber se mandantes criminosos de alta categoria, de cúpula de partidos nacionais, também seriam indiciados (e não somente alguns gatos pingados, só para dar o tom de que a tal cpi seria imparcial).

pô, CPI da Privataria Tucana.

Confesso que eu acharia interessante.

Mulheres da Máfia

2 de outubro de 2012

Não existem mulheres na Máfia.

Era o que se dizia. Era o, digamos assim, puro senso comum.

O impressionante é que, até há muito pouco tempo, isso continuava sendo o senso comum.

De mulheres, haveria somente as esposas de mafiosos que, obedientes, fecham os olhos aos ‘negócios’ dos seus maridos, persignam-se e se calam, quando indagadas de alguma coisa. As mães dos mafiosos que suspiram pelos destinos dos seus filhos. As filhas que, juntamente com as mães e esposas, são protegidas pelo respeito milenar e não são tocadas nem manchadas em sua honra, nem mesmo nas piores guerras entre as famílias, pois caso contrário, se daria direito pleno à vendetta. Que mais? Obviamente, uma outra espécie de mulheres, estas sim perigosas e traiçoeiras: as amantes dos mafiosos que, além de solapar as tradicionais bases familiares, ainda podem carregar armas e praticam pequenos serviços aos seus homens. Destas, pode-se esperar tudo!

Com muito custo, aos poucos foi se percebendo o quanto há de balela nestes mitos tão trabalhados e requentados e tantas vezes propagados pelos meios de comunicação, sendo que o menor não é certamente o cinema de Hollywood. Clare Longrigg começou a partir do final da década de 1980 a pesquisar a participação das mulheres na Máfia ao acompanhar o movimento de várias viúvas de políticos, juizes e policiais vitimas de mafiosos. O movimento formara em 1982 a organização Associação de Mulheres Antimáfia que, corajosamente, exigia maiores atitudes de repressão, ao mesmo tempo em que conclamavam a que as esposas de mafiosos depusessem contra seus maridos.

Muito embora, na maioria das vezes, estes depoimentos fossem encarados com total ceticismo.

Segundo Longrigg, um juiz de Palermo teria declarado, por exemplo, em um despacho judicial que “mulheres não podiam ser culpadas por lavagem de dinheiro porque não possuem autonomia e, de qualquer maneira, são burras demais para tomarem parte no difícil mundo dos negócios’”. Não era, de forma alguma, uma opinião única: “Alguns magistrados ainda mantém a opinião de que as mulheres que tocam os negócios de seus maridos não estão cometendo crime – que a esposa de um mafioso não tem escolha e, portanto, não pode ser responsabilizada moralmente.”

Rita Atria

Com o aumento dos depoentes, principalmente a partir de 1991, e a constatação da profundidade de suas informações, é que se começou a ter uma visão aprimorada do montante de seu conhecimento.

Não só conhecimento as mulheres partilhavam, nem tampouco participação. Se por um lado, a expansão das atividades mafiosas dentro da Itália solapava as rígidas normas hierárquicas machistas ao exigir cada vez maior quantidade de mão de obra, incluindo-se mulheres e crianças, por outro, a intensa repressão e as constantes brigas entre as famiglias, acarretavam a morte, prisão ou a fuga de diversos destes ‘pais-de-família’, abrindo espaços e buracos de poder que precisavam ser preenchidos. E o eram. Pelas respectivas mulheres.Se, anteriormente, elas ‘auxiliavam’ dando os seus nomes para os registros bancários dos maridos (na Itália, não eram sequer investigadas), ou transportavam quantidades de drogas ou armas (não eram revistadas, sequer eram destacadas policiais femininas para isso), agora estavam tomando decisões, movimentando contas, manejando dinheiro, planejando assassinatos, repartindo poder. E também estavam começando a responder por isso.

Desta forma, na Itália “o número de mulheres acusadas de portar e traficar drogas cresceu de 37 em 1994 para 422 em 1995, enquanto o número de acusadas por lavagem de dinheiro aumentou de 15 para 106 e numero de mulheres presas por agiotagem subiu de 199 para 421”. Esta súbita e repentina aparição da importância feminina mafiosa indicava, na realidade, que as autoridades estavam a abrir afinal os olhos.

Tudo isso é até que muito interessante, mas na verdade fiquei até o momento somente no plano da introdução. Clare Longrigg foi bem mais longe. Além de agrupar todos os dados disponíveis minuciosa e cuidadosamente, ela foi atrás e conversou com muitas destas mulheres, tanto das pró quanto anti-máfia. Foi em casamentos, batizados, julgamentos, prisões, compilou as histórias, arrumou os arquivos fotográficos. São histórias tremendas, de mulheres poderosas, ousadas. Impossível não pensar, por exemplo, só para ficar em um único, em Ninetta Bagarella.

Antonieta, ‘Ninetta’, Bagarella era muito inteligente, bonita, consciente do poder da mídia, e era noiva de um aspirante a ‘chefão’, Salvatore Riina, quando, em 1971, foi presa e acusada de estar servindo como ligação clandestina entre vários chefes locais, transmitindo recados ou instruções. O noivo estava escondido e ela a primeira mulher a ser indiciada por ligações com a Máfia (e ela mesmo era filha de um chefe respeitado). Sua defesa foi exemplar. O eixo foi a dedicação que ela tinha ao marido: “Eu amo esse homem. Sou mulher, não sou? Não tenho direito de amar um homem, não é essa a lei da natureza? Vocês perguntam como eu poderia ter escolhido um homem como ele, de quem as pessoas dizem coisas horríveis. É contra a lei amar um homem como Salvatore Riina? Eu amo esse homem porque ele é inocente.

Longrigg conta que “Ela convenceu com sua imagem de sinceridade: ele

Ninetta Bagarella in una foto degli anni 70

estava escondido e ela fazia o papel da noiva saudosa que duvidava do afeto de seu amor.

– Há dois anos que não vejo Riina, nem sei mais se ele me ama.

A imprensa de Palermo apaixonou-se.”

Casaram-se em uma cerimônia secreta e tiveram quatro filhos, que tiveram de ser criados em casa pela própria mãe, que havia sido professora. Também estes entraram para a organização, a seu devido tempo, e sistematicamente receberam a ajuda de Ninetta, quando por sua vez, eram presos. Desta vez, como a Mãe que pedia a compreensão dos homens e o favor de Deus. Em 1996, ela mandava uma carta para imprensa: “Decidi abrir meu coração, o coração de uma mãe que está inchado e transbordando de dor pela prisão de meu filho..] Aos olhos do mundo, meus filhos já nasceram culpados. Ninguém se lembra que quando eles nasceram eu (la mamma) era uma cidadã livre e meu marido era apenas culpado de deixar de deixar de se apresentar durante a condicional. Criamos nossos filhos fazendo enormes sacrifícios, superando tremendas dificuldades, dando-lhes todo amor e apoio possíveis.”

E por ai vai, com muitos ´figlio’ e ´mamma’ espalhados pelo texto, além de respeito á família, ás tradições, etc e tal, só esquecendo de alguns detalhes, como a condenação à prisão perpetua do marido, os atos criminosos dos filhos, etc.

Ninetta Bagarella representa um ‘estilo’ de mafiosa que sabe muito bem aonde e como aplicar pré-conceitos, ilusões e mitos que a Máfia divulgou e difundiu. Outros ‘estilos’ mais diretos e objetivos, como Roseta Cutolo que escapou de mais de nove acusações de assassinato e cumpriu cinco anos de pena por ligação com a Máfia; Teresa Deviato, presa e indiciada por extorsão; Rita Atria, que se tornou colaboracionista da Justiça, não suportou a pressão e suicidou-se em 1992.

E várias outras. “Mulheres da Máfia” é um esplêndido livro-reportagem, de linguagem límpida e direta que nos ajuda a descortinar um pouco mais nossa costumeira realidade.

texto revisto e atualizado, publicado originalmente no iGLer

Freya das sete ilhas

28 de setembro de 2012

 

Antônio Olinto conta, em sua excelente apresentação a este volume das obras de Joseph Conrad editada pela Revan, que quando Freya das sete ilhas foi publicado pela primeira vez houve um protesto dos leitores, reclamando do final especialmente infeliz reservado aos personagens principais. Teve até quem disse que nunca mais leria outro livro do autor.

Pode-se entender esta reação. Pode-se inclusive sentir o mesmo. Freya Nielsen (ou Nelson) é tão viva, bela e radiosa, e seu envolvimento e amor por Jasper Allen é tão empolgante e bonito, que nos deixamos levar, participamos de sua ânsia, sofremos suas angústias, saboreamos sua juventude e beleza. Conhecemos a austera honestidade do velho Nelson (ou Nielsen) e sua absurda ingenuidade e receios infantis. Somos tomados pela malevolência e estupidez de Heemskirk. Somos dominados pela poderosa escrita de Conrad e nos deixamos conduzir por onde ele quiser.

Por isso ficamos tão mais chocados e impactados, mesmo que desde a primeira linha, desde o primeiro instante sejamos informados de que a tragédia já aconteceu, já está formalizada e terminada e os destinos foram determinados, concluídos, estão no passado.

Naquele dia – e aquele dia foi há muitos anos – eu recebi uma carta longa, loquaz, de um velho amigo, um dos camaradas que viajavam nas águas do Oriente. Ele ainda estava por lá, mas estabelecido e de meia idade. Eu o imaginava transformado em corpulento, fisicamente, e doméstico, nos hábitos. Em suma, surpreendido pelo fato comum a todos aqueles que, sendo muito amados pelos deuses, morrem cedo. A carta, do tipo – ‘você se lembra?’ – era uma carta triste, de reminiscências do passado. E, entre outras coisas, ‘certamente você se lembra do velho Nelson’, ele escreveu.”

E deste começo de aparência tão inócua, saberemos mais tarde a quantidade de informações que já nos foi passada de modo tão simples, tanto sobre a história que recém-iniciou, quanto dessa ciranda de narradores típica de Conrad.

Joseph Conrad por JDCanales

A infelicidade não acontece pela presença ou caprichos de deuses externos, mas por decorrência dos atos dos próprios envolvidos; tal como na Tragédia grega clássica, o mórbido jogo do ‘Destino’ só é possível pela iniciativa dos seres humanos. ‘Destinados’, portanto, a serem infelizes, sempre? E por sua culpa? Tragicidade, culpabilidade, são termos que nos remetem de imediato ao universo de Conrad, e são bem citados e discutidos por Antonio Olinto.

Narradores múltiplos que constantemente se auto-referem e se inserem como na brincadeira das caixas de diversos tamanhos que se encaixam uma dentro da outra em um jogo infinito; o senso do trágico que se imiscui nos detalhes ínfimos do cotidiano; personagens densos, minuciosamente construídos, vívidos e que colam em nossa imaginaçao; narrativa límpida, clara, direta e assombrosa pela sua força. Joseph Conrad está por inteiro em “Freya das sete ilhas”.

A Apple não gosta de Vagina

25 de setembro de 2012

 

Falando de bizarrices pseudomoralistas…

Para vender o novo livro de Naomi Wolf, ‘Vagina: A New Biography’, o site da Apple trata a palavra ‘vagina’ como se fosse um palavrão, uma obscenidade, palavra de baixo calão, uma impropriedade, e a censura usando asteriscos. A chamada do texto fica, assim, um primor de esquisitice, caretice e estupidez:

‘V****a’ – uma nova biografia é “um trabalho novo e surpreendente que muda radicalmente o modo como pensamos, falamos e entendemos a v****a”. A autora, segundo a Apple, “faz uma pesquisa histórica e mostra como a ‘v****a’ foi considerada sagrada por séculos até ser vista como uma ameaça”, e pergunta por que “até hoje, num mundo cada vez mais sexualizado, ela é lembrada de uma maneira envergonhada“.” (O Globo).

Isso já tem alguns dias e foi bem discutido pela web, portanto só vou repetir os pontos mais óbvios e mais destacadamente bizarros:

1 – o livro traça uma história de como o conceito e a palavra Vagina ainda são tratados e recebidos com vergonha e rebaixados;

2 – A Apple censura a palavra no texto mas mantém a imagem da capa que não pode ser censurada, o que aumenta ainda mais o contrasenso;

3 – A Apple trata a palavra do órgão feminino como palavrão, como já fez e continua fazendo em outras ocasiões, mas o engraçado é que não faz o mesmo com a palavra do órgão masculino, mantendo assim, por exemplo, um livro com o título “Why Is the Penis Shaped Like That”

Pois é, vai entender…

A Love Supreme – A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane

11 de setembro de 2012

 

Em “Acknowledgement” John Coltrane pulsa rápido seu sax tenor e Elvin Jones retine o metal em uma introdução forte, simples e curta. É uma conclamação, um chamado. Um aviso. Saberemos logo em seguida o que significa. Enquanto o tema se impõe, Coltrane sola e aos poucos as quatro notas se repetem, falam a frase-título, ‘a-love-su-preme’, como um mantra, o reflilhão da liturgia jazzística que está a se impor. O som cala fundo. É, ao mesmo tempo, calmante, reflexivo, introspectivo, indagador, experimentador. Há controle e fuga, viagem e condução, reflexos da busca de Coltrane, que volta com o mantra, experimentando-o em diversos tons, fôlegos, aspirações, até mesmo com a voz, a de Coltrane e de mais alguém.

Em ‘Resolution’, o segundo movimento da suíte de Coltrane, há de novo outra conclamação no inicio, mas desta vez é uma verdadeira tomada de posição, é o próprio vigor da emoção dos músicos se manifestando. O que havia de discreto e simples no movimento anterior aqui explode. Para mim, é o momento mais fascinante, a ponto de me arrepiar o cabelo. Depois de muito tempo, aquela melodia ainda persegue a memória. MacCoy Tyner toma conta do tema com seu piano e logo volta à bola para o líder, que a retoma com mais emoção ainda.

Segundo nos mostra Ashley Kahn (“A Love Supreme – A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane“, editora Barracuda) ao ouvir as gravações originais dos takes de estúdio, houve normalmente algumas tentativas, voltas e retomadas, como era natural. Coltrane podia retornar várias vezes, como o fez nos dois primeiros movimentos (‘Resolution’ teve seis takes falhados ou imperfeitos, antes dele se contentar com o sétimo) (e é sempre interessante, quando ouvimos somente o resultado final, como poderia ser realmente diferente daquilo que foi; é claro, não poderia). ‘Pursuance’, o terceiro movimento, foi levado de uma só vez, um único take. Para mim (e isso está longe de ser uma avaliação fria e objetiva) é o momento mais nervoso, mais agitado, mais viajante. Sem dúvida, é a bateria de Elvin Jones e seu “estilo ‘bastante ativo”, e sua forma toda particular de misturar e trazer os ritmos “africanos e caribenhos para a bateria de jazz tradicional”, ao abrir o movimento, dá o tom geral. Pelo menos, é como aparece para mim. Jimmy Garrison com seu baixo dá um breque, puxa o tom para baixo, soa solene, profundo.

Quase não sentimos a transição para o quarto movimento, o ‘Psalm’, pois Coltrane pega o tom intimista de Garrison e o aprofunda ainda mais. E aqui é preciso respirar fundo. O sublime acontece. Coltrane se fecha, seu sax se aquieta, os sons se acalmam. Os demais músicos o acompanham, mas servem somente como pano de fundo. Pois Coltrane assume um tom de oração. Neste momento, através do Jazz, ele está orando, conversando com Deus.

“A Love Supreme” é uma composição, uma suíte jazzística, criada no apogeu da capacidade artística de John Coltrane e seus companheiros McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria), como uma elegia, uma canção de louvor ao Senhor. Não é blues (embora, uma ponta aqui e acolá apareçam por conta da extrema versatilidade das influências e do conhecimento de Coltrane), nem gospel (a inspiração existe, é claro, mas somente como inspiração). É jazz, no seu extremo. Feita para tocar o sentimentos humanos, beirando no sublime religioso.

Talvez, para quem me conhece, até estranhe minha referência e o meu fervor em uma composição que possui tal grau de dedicação religiosa. Fico sinceramente ofendido com este tipo de pensamento. É como se meu ateísmo me impedisse de reconhecer a beleza e a cultura dos que cultivaram sua veia religiosa e conseguiram expressá-la com fervor e arte (como quando um amigo, grande amigo aliás, ficou um tanto chocado ao saber que eu curtia e apreciava o ‘Messias’, de Haendel; até pensei em responder que o pensamento rasteiro e o preconceito estavam vindo dele e não de mim, mas deixei quieto).

Portanto, se como ateu posso me impressionar e me comover até ás lágrimas com um ‘Messias’ ou com ‘A Love Supreme’, mesmo sem compartilhar de suas convicções tão intimas (e, de certa forma, até devo fazê-lo, pois o que me pega é sua música, sua arte, tão genuinamente humanas e belamente realizadas), não se pode deixar isso de lado quando se pensa em sua formação, em sua construção, em seu objetivo. Claro, para um rapaz de poucos anos atrás que estava se iniciando em sua formação musical e havia se impressionado com o disco ‘Standards’, de Thelonious Monk (foram as primeiras notas de ‘Memories of You’, que me conquistaram definitivamente para o jazz), e com o ‘Pithecanthropus Erectus’, de Charles Mingus (e tinha acabado de assistir a biografia de Charlie Parker, ‘Bird’, do Clint Eastwood, e se encantado), demorei um bom tempo para conhecer e apreciar de verdade este trabalho de John Coltrane.

Me lembro vividamente até hoje o exato instante da coisa: havia decidido saber, afinal de contas, qual o grande X deste tal Amor Supremo, preparei meu lugar com cuidado, me fechei para o mundo, acionei o braço da agulha e a rotação do disco dando um ligeiro tranco para a direita, ligando assim o aparelho (no ‘toca-disco’, aquele aparelho ancestral e longínquo que tocava o long-play, a mídia da época, que até se parecia com um cd dos de hoje, só que preto e bem maior), sentei, relaxei, ouvi e fiquei estupefato com a minha própria estupidez em não tê-lo ouvido com a devida atenção há muito tempo atrás!

O impacto de “A Love Supreme” foi absurdamente tremendo na época do seu lançamento. Até hoje, é o disco de jazz mais popular de todos os tempos e um dos mais vendidos (mesmo levando-se em conta a péssima condição das estatísticas relativos ao mercado de jazz e o virtual desconhecimento de cifras e números que reflitam o montante real de suas vendas; o que se pode fazer é uma avaliação aproximada). Lançado em 1965, influenciou e foi reverenciado não só pelos músicos, mas, na prática, pelos movimentos sociais e políticos (década de sessenta, lembre-se, momento dos grandes movimentos de afirmação negra norte-americana e pelos direitos civis), religiosos, e no plano artístico em específico, deixou marcas profundas em todo o universo musical, e não somente jazzístico. Ashely Kahn ajuda a rastrear esse impacto e essa influência, neste livro que eu teria pago com um pedaço da minha existência para poder ter lido na mesma época que estava começando a ouvir jazz (e ao qual fiquei cobiçando desde o primeiro instante que soube que fora editado nos Estados Unidos; sentimentos que chegaram a uma verdadeira aflição quando soube seria editado aqui no Brasil pela Barracuda).

Ashley Kahn escreve sem frescuras, sem pedantismos, sem demonstrações de gíria de músico-escrevendo-para-músico, e ao mesmo tempo sem didatismos infantis dirigidos para um ‘grande público’, sobre como foi o nascimento desse disco, sua gênese e repercussões. Com estilo claro, simples, de um apaixonado pelo jazz, com farta documentação (entrevistou músicos ainda sobreviventes do grupo de Coltrane e pessoas ligadas ao redor, assim como à viúva do saxofonista e seu filho, também músico, Ravi Coltrane), com trechos de entrevistas ainda inéditas do próprio Coltrane (ele não era muito dado a dar entrevistas, acreditava que sua música falava por si mesma e por ele, portanto não falava muito; Kahn aproveita um pouco disso), e muito material fotográfico também inédito.

Portanto, essa edição da Barracuda é uma delicia de se ler, visualmente linda, informativamente embasada, serve tanto para os que já conhecem todos os detalhes (para renovar sua devoção) quanto para os calouros que estão chegando e ainda não sabem o tamanho desse universo.

Para esses, eu diria o seguinte: esqueça o jazz. É, simplesmente deixe de lado. Pegue esse livro e curta-o como um pequeno romance, um artigo de jornal (um ótimo artigo de jornal) um pouco maior do que o comum. Se você tiver o disco ou o cd à mão, ainda melhor, mas deixe-o somente como um pano de fundo, bem baixinho. Não preste atenção na música, neste primeiro momento, não tente entendê-la. (certa vez, Coltrane disse que bastava ouvir a música, não era necessário compreendê-la, não adiantava tentar explicar, o ‘sentir’ vinha primeiro e era mais importante). Portanto, deixe-a de fundo, não a ouça. O que estou tentando dizer, ao final, é: não force a percepção. Leia e deixe fluir.

Ao término da leitura, você pode ter sentido um êxtase religioso ou tomado um novo rumo em seus gostos musicais e ter decidido até se tornar um saxofonista. Ou não. Tenho certeza absoluta que terá tido, pelo menos, uma leitura extremamente agradável, eu garanto.

 

 

 

 

livro de contos ‘Desconcerto’, de Claudinei Vieira, roda por aí

1 de setembro de 2012

 

 

 

…mas ainda tenho alguns exemplares, os últimos, sem apelação

Dez experiências impressionantes sobre o comportamento humano

11 de agosto de 2012

 

Pense na seguinte situação: você está fazendo parte de uma experiência científica. Entra em uma sala com mais uma pessoa que chega ao mesmo tempo que você, sem saber muito bem o que vai acontecer, só têm uma certa ideia de que se trata de uma espécie de teste de memória. Há um pequeno sorteio para decidir quem vai fazer perguntas e quem responderá. Por este sorteio, você perguntará e se sentará em frente a uma mesa com um microfone e uns aparelhos com botões enquanto a outra pessoa se dirige para uma sala do lado. Com um detalhe: o seu companheiro de experiência sentou em uma cadeira repleta de fios e amarras, as quais você até ajuda a prender.

O esquema é explicado: você lerá uma lista de nomes, várias palavras em cada grupo, e o outro tem que repetir na mesma seqüência. A cada erro que o outro cometa, ele recebe um choque elétrico. Curtos, nem doloridos; irritantes, no máximo. No entanto, a cada erro cometido, a voltagem aumenta. Ao seu lado, está sempre um supervisor (cientista, médico?; pelo menos, vai estar vestido com avental) que monitora a situação e garante a integridade física de quem recebe o choque.

Só que os erros se acumulam e a voltagem fica cada vez mais alta. O cara começa a gritar de dor. Urrar. Você pode até dizer que a coisa toda tem que parar (afinal a pessoa está sofrendo!), mas o supervisor repete que, apesar dos choques serem doloridos, não haverá nenhum dano tissular permanente. O que você faz? Para tudo, e vai embora pra casa, inclusive sem receber os trocados que eles haviam te garantido pagar? Ou continuará aumentando a voltagem, até chegar a um ponto que a pessoa dê um grito desesperado? E final. Até não haver não resposta nenhuma, pois ela não tem condições de responder (terá morrido? os tais danos tissulares terão sido em demasia?)

Não é uma simples história ou pergunta retórica, nem mesmo teórica. Esta experiência realmente foi levada a cabo, em 1961, por Stanley Milgram que desejava entender como funciona o mecanismo de obediência à autoridade. Lembre-se que o peso e o horror do Holocausto eram ainda mais presentes do que hoje, e não se concebia o porque tantas pessoas terem cometido o que realmente cometeram durante a guerra em nome, ou sob a desculpa, de estarem obedecendo ‘ordens’. Milgram era professor-assistente de psicologia de Yale e tinha a hipótese de que o determinante não era a figura da Autoridade em si, mas o poder da situação. Dependendo da situação, pessoas comuns, normalmente pacatas, poderiam se tornar bestas agressivas e passivas, obedientes.

Voltando à pergunta: o que você, caro leitor deste texto na internet, faria no lugar. Você giraria o botão? Os choques não são reais, a cadeira com os fios é falsa, o seu ‘colega’ de experimento na verdade é um ator que representa a dor até onde você permita. Mas tudo isso só se fica sabendo Depois. Na hora, tudo é real: você está dando choque em uma pessoa! Independente do que você responda neste momento, o fato é que é impossível se ter certeza, a não ser que estivesse passando pela experiência mesmo. Você sabe!, que não faria isso, não é mesmo?; que não cometeria um ato tão brutal.

Naquela tarde de junho de 1961, de 100 homens comuns e pacatos de New Haven, Connecticut, homens que fizeram o tal ‘teste de memória’, 65 giraram o botão, aumentando a dosagem a ponto de ‘matar’ a outra pessoa.

65.

O que isso prova? O que Milgram realmente provou? A partir do experimento, podemos partir para conjecturas e discussões infindáveis, mas o fato inegável é que há algo aqui, estranho. Muito forte. Muito potente. Foram 65!

Lauren Slater, psicóloga, autora de vários livros, entre os quais “Bem Vindo ao Meu País”, resgata em “Mente e Cérebro” – Dez experiências impressionantes sobre o comportamento humano” dez grandes experimentos realizados no século XX que, normalmente, ficam relegados a livros didáticos ou obras de referência em universidades de psicologia ou em revistas especializadas. Grandes no sentido de que provocaram súbitas rupturas, promove olhares para profundezas insuspeitadas no ser humano, desconcertam, polemizam. Ferem. E são alvos de discussão e polêmica até hoje.

Das “caixas de educação e condicionamento” de Skinner ao “sugestionamento social” de John Darley e Bibb Latané, da “Teoria da Dissonância Cognitiva” de Leon Festinger aos experimentos com macacos de Harry Harlow, cada uma provoca um estranhamento absurdo ao que pensávamos que fosse certo e estabelecido. Eles desconstroêm e derrubam estas certezas ilusórias, com golpes fulminantes.

O mérito de Lauren Slater é de, que além de resgatar estas histórias, faz questão de apresentá-las do modo mais humano, passional e direto possível. Ela entra em contato com as pessoas que participaram dos projetos, pede sua opinião, observa como elas evoluíram, como pensam o que fizeram anteriormente. Fala do impacto dos experimentos, quais suas conseqüências, como foram combatidas pelo seus inimigos. Ela nunca deixa de enfatizar e esclarecer o outro claro, as opiniões contrárias. E quando possível, também tenta repetir, ao seu modo, as experiências.

Retoma, por exemplo, o que fez David Rosenhan que, em 1972, quis testar o “quanto os psiquiatras eram capazes de diferenciar os sãos dos insanos”. Como? Pediu para oito amigos que se apresentassem em algum hospital mental e dissessem para os médicos que estavam ouvindo um barulho, “uma voz que dizia Tum”. Mais nada. Que não mentissem sobre suas vidas, que não acrescentassem novos sintomas. Somente o barulho. Tum. Rosenhan também faria a mesma coisa e verificaria quantos seriam internados e por quanto tempo. Todos! foram internados, todos “exceto um deles, tinham recebido o diagnóstico de esquizofrênicos, com base num único sintoma idiota (a exceção recebeu o diagnostico de psicose maníaco-depressiva)”, a média de permanência foi de 19 dias (a mínima foi sete, a máxima 52). E todos “foram liberados com sua doença em remissão, o que significa, obviamente, que sua sanidade essencial nunca fora detectada e que sua presente sanidade foi entendida como uma flutuação temporária”.

A gritaria foi tremenda (como em todos os outros experimentos, aliás). Aquilo seria uma farsa, uma brincadeira absurda, e foi lançado um desafio, aceito por Rosenhan: que em três meses, ele mandasse outros pseudo-pacientes, cuja quantidade fosse segredo, e os hospitais se incumbiriam de desmascará-los. No final dos três meses, orgulhosos e arrogantes, eles identificaram 41 mandatários de Rosenhan. 41. Acontece que ele não tinha mandado ninguém. Absolutamente ninguém.

Lauren resolve repetir a experiência. O que, provavelmente, seria uma brincadeira boba, logo descoberta. Estamos no século 21, muita água rolou, estes experimentos fazem parte da literatura médica de qualquer estudante de psicologia. Ela vai em frente. Utiliza inclusive o mesmo sintoma do Tum, e mais nada. Ela seria internada?

Até pensei em acabar a resenha aqui, para instigá-los a ler o livro, mas acho que é sacanagem. O resultado do re-experimento de Lauren foi o seguinte: ela foi a oito hospitais em seguida. Não foi internada em nenhum. Em todos recebeu o diagnóstico de depressão psicótica, e saiu carregada de remédios antidepressivos e antipsicóticos.

E ninguém lembrou da história de Rosenhan.

“Mente e Cérebro” – Dez experiências impressionantes sobre o comportamento humano”  é um livro que mete um certo medo pelas suas vastas implicações.

Sylvia Plath, Diários e a incógnita de sua morte

25 de julho de 2012

 

Entender a vida de uma pessoa (qualquer pessoa) é uma incógnita que incomoda e atiça a curiosidade da humanidade; a quantidade de biografias de personalidades famosas (ou que, pelo menos, teve o seu quinhão de celebridade, seja por qualquer motivo) nunca diminuiu e sempre constituiu um ‘gênero’ de enorme sucesso. Sylvia Plath, no entanto, inverteu essa equação. É sua morte que incomoda, que estranha, que fustiga a imaginação dos curiosos, confunde os estudiosos, atrapalha a vida dos sobreviventes. Pois esta morte pode ser considerada como uma espécie de catástrofe que continua fustigando aos que a conheceram e com ela se relacionaram. Ou quem sabe tenha sido a finalização inevitável de uma crise permanente (social, pessoal, mental) que sempre a teria acometido e finalmente explodido em um ato de auto-imolação. A Nêmesis atacando pelas suas próprias mãos, após uma tocaia incansável. Houve quem considerasse seu suicídio como um acidente infeliz: ela teria armado uma situação na qual pudesse ser resgatada antes do desenlace, mas da qual perdera o controle e seus vizinhos não teriam compreendido que estava acontecendo alguma coisa de errado em seu apartamento.

E há a grande questão, aquela que divide os pesquisadores, os biógrafos, os parentes, os admiradores de poesia e aqueles tais curiosos: a participação de seu marido, Ted Hughes (ele próprio um poeta respeitado e com carreira literária independente), criador de uma situação que teria tornado insuportável a vida de Sylvia (tornando-o, portanto, no vilão maquiavélico da história); ou, então o marido incapaz de suportar a paranóia de uma mulher ciumenta e desequilibrada e com impulsos suicidas (e, nesse caso, a vitima teria sido ele).

Poderia-se perguntar, na verdade, por quê a morte de Sylvia comove e intriga tanto, por quê nos afeta dessa forma. As respostas seriam variadas, abundantes e contraditórias entre si tanto quanto as colocadas acima, mas o fato é que isso acontece. Talvez seja chocante demais ter se matado uma pessoa tão inteligente, jovem, bonita e instigante, no auge de sua produção literária e reconhecida como das mais importantes poetas norte-americanas. Talvez toque em fibras psicológicas internas que nos afeta a todos, embora muitas vezes nem tenhamos consciência delas, e quando as percebemos não temos coragem de encarar. Não haverá aqui algum tipo de laço que nos une, forçando-nos a aceitar que somos humanos, isto é, fracos, frágeis, sempre à beira do desespero à borda de um precipício? Nesse ponto, a publicação dos diários de Sylvia Plath deveria nos ajudar a entender sua vida, sua mente, seu íntimo mais profundo e, conseqüentemente, sua morte.

Escritora compulsiva, Sylvia jogava em seus cadernos todos os detalhes, pensamentos, considerações e ações pelas quais passava, desde os 13 anos até dias antes de morrer, com poucas interrupções. Mais do que impulso, uma necessidade, uma fundamentalidade. Certa vez, ao ter passado por uma crise pessoal, onde se misturou um braço quebrado, ela considerou indispensável colocar isso no papel para ter uma visão correta do que acontecera e sua diferença com o presente: “Portanto, este é o trecho inicial incipiente da virada. Ainda bem que expus aqui parte do inferno pavoroso por que passei. Caso contrário, do ponto de vista privilegiado atual mal poderia crer nele!”. Em outro momento, é ainda mais enfática: “É impossível ‘capturar a vida’ se a gente não mantém diários.”

Os diários em si, os cadernos, também possuem uma história, que se tornou extremamente complicada com a morte de Sylvia. Alguns cadernos foram obstruídos por Hughes e guardados sigilosamente para serem abertos somente anos depois. Aos poucos, ele foi liberando-os. Mas, dois não foram encontrados. Um teria desaparecido, conforme ele, não localizado até hoje. O outro, o último, no qual Sylvia escreveu até três dias antes de morrer, foi confessadamente destruído. É obvio que isso só aumentou as desconfianças e o ódio da facção Contra-Hughes. Fora estes, todos os cadernos da fase adulta de Sylvia Plath, de 1950 a 1962, estão reproduzidos aqui, nos mínimos detalhes, com os desenhos que ela colocava de vez em quando, as misturas com letras, até erros de linguagem: estão tal e qual foram escritos.

É possível se dizer que nestas páginas estão contidas as chaves para se entender o desenvolvimento do psiquismo, da vida, e em conseqüência, da morte da poeta? Pergunta-monstro. No entanto, uma falsa pergunta que leva a caminhos equivocados. Pois o que encontramos, no final das contas, são as palavras de uma mulher extremamente inteligente, consciente de sua força como artista, mesmo com grandes graus de auto-crítica, consciente também de sua beleza e de seu vigor sexual, de enorme insegurança no trato com o marido e com os filhos.

E tudo isso já sabíamos. O que acontece é que quanto mais paginas escritas, quantos mais detalhes acumulados, quanto mais pensamentos assimilados, mais a incógnitas aumentam em ritmo, tamanho, profundidade e espacialidade possíveis em relação diretamente proporcional. Talvez seja melhor encarar os Diários como Texto e deixarmos de lado um pouco a questão da intimidade ‘real’ de uma pessoa. E nesse caso encontraremos um livro denso, complexo, com milhões de detalhes e, em muitos trechos, até mesmo belo, que deve ser absorvido com vagar, com apreciação. Além de estar entupido de notas, explicações, apêndices que ficam em separados para não interromper a fluidez da escrita. Como diz Karen V. Kukil, a organizadora dos originais, “Sylvia Plath fala por si nesta edição integral de seus diários”. A interpretação fica, portanto, por conta de cada leitor.

 

 

 

Sangue na Lua e “Crazy” Lloyd Hopkins, o policial psicopata de James Ellroy

11 de julho de 2012


A literatura de James Ellroy incomoda. Existe um grau de paranóia ou neurose em seus personagens e em suas histórias que impressiona. Para os padrões de hoje, quando estamos tão mal-acostumados com a violência diária, cotidiana, persistente, onde nossos sentidos são continuamente assaltados pela brutalidade e pela feiúra ou pela hipocrisia burra, onde enfim, parece que nada mais pode impressionar, Ellroy impressiona.

Um estranhamento que ultrapassa a mera narração de atos violentos ou a descrição de esquizofrênicos serial killers. É pior: existe uma lógica interna que determina e explicita o horror, mas que por ser orgânica e ter uma ligação tão íntima com o ser humano, cria um sentimento de expectativa medrosa. Afinal, tudo pode ser pior, não? Não para James Ellroy que parece escrever, fria e costumeiramente, de dentro do próprio inferno. Seus livros são como facas que se enterram em nossa mente: ele se compraz em revirar muitas vezes na ferida ao mesmo tempo em que diria: não há alternativas, não há saídas.

É por este mesmo motivo que os finais de seus livros são relativamente fracos em relação a todo o corpo da história. Ellroy se atem as regras do bom romance policial e se obriga a fechar e proporcionar as soluções para um universo que em si não proporciona soluções.

E, é lógico, conduzindo tudo isso, sangue, morte, tiros, mentes perturbadas, situações de pavor e suspense, recriados por uma mão absolutamente segura do que está fazendo.

É inevitável referir-se ao próprio Ellroy e a sua mãe para explicar sua literatura, mesmo porque ele é o primeiro a retornar ao assunto, várias e várias vezes, ao longo dos seus livros, entrevistas ou palestras.

Quando seus pais se separaram, Ellroy ficou com a mãe. Alcoólatra, neurótica, violenta e promíscua. Certa vez, perguntou ao filho se ele preferia ficar com ela ou com o pai; respondeu que com o pai e recebeu um tapa na cara. Ellroy estava com dez anos quando sua mãe foi encontrada em um terreno baldio, barbaramente trucidada, um crime nunca solucionado, os assassinos nunca foram encontrados.

A roda-viva de Ellroy foi alucinante: instituições para crianças com problemas mentais, drogas, pequenos roubos e furtos, alcoolismo precoce. Até chegar um momento em que esteve praticamente prestes a morrer de tanto beber. Recuperou-se, começou a escrever e pode-se perceber o quanto os fantasmas de sua existência são passados para suas obras. A maioria dos seus livros gira em torno de serial killers que matam mulheres, com descrições explícitas de seus crimes. A grande diferença para a vida “real” é que estes criminosos são pegos. Com “Tablóide Americano” iniciou uma nova fase, saiu do eixo dos serial killers e começou a montar um enorme painel histórico-político dos Estados Unidos começando a partir do assassinato de Kennedy e se estendendo por mais dois livros.

Antes de escrever a segunda parte desta trilogia, no entanto (“6 Mil em Espécie”, editado também pela Record), Ellroy retornou, literalmente, ao cenário da morte de sua mãe e começou a fazer suas próprias investigações. O resultado deste trabalho foi “Meus lugares Escuros”.

“Sangue na Lua” é o seu terceiro romance e foi escrito antes de estourar com “Los Angeles – Cidade Proibida”. Representa plenamente todos os aspectos de suas neuroses íntimas. Primeiro de uma trilogia com o Sargento “Crazy” Lloyd Hopkins, um policial com um QI extraordinário e a melhor folha de crimes solucionados da história da corporação. Genial, impulsivo, determinado, fascista, carregando complexos profundos em sua psique. Difícil diferencia-los dos “bandidos”, na verdade. Em “Sangue na Lua”, Hopkins se depara com um serial killer de mulheres quase tão inteligente quanto ele e, para captura-lo, destrói sua vida familiar, acaba com as (poucas) amizades que possui e sacrifica até sua própria posição na polícia.

“Tablóide Americano” e “Los Angeles – Cidade Proibida” registraram o respeito e o sucesso de público e crítica, definindo-o como um dos melhores escritores da moderna literatura norte-americana. Mas, como podemos percebemos com “Sangue na Lua”, ele já era dinamite pura bem antes disso.

 

Charles Mingus, Saindo da Sarjeta

27 de junho de 2012

 

A narrativa como Jazz.

Ralph Ellison, um dos mais importantes escritores norte-americanos (e é bom especificar: escritor negro norte-americano) disse certa vez que costumava encarar sua escrita como uma espécie de música: quando empacava, quando a história parecia que não queria andar, ele se soltava e deixava sua mão correr como um solo de jazz ou um improviso de blues. Ler seus livros traz mesmo essa sensação fluida, corrente, e ao mesmo tempo, densa, profunda. Vôo de imaginação com segurança e controle, liberdade e mestria. Jazz.

De outro grande autor negro norte-americano, Chester Himes, não cheguei a ler alguma declaração parecida, mas nem é necessário: suas histórias violentas, seus romances policiais passados no Harlem, seus personagens locais, estas figuras, os tiras e gangsters e viciados e prostitutas e empresários negros vítimas ou algozes de uma sociedade profundamente corrompida, alterada, racista, são todos regados a bebidas, drogas, sexo, discriminação e muita música, soul, blues, calipso. Jazz.

Creio que nenhum dos dois fosse músico ou tivesse alguma intimidade maior com instrumentos musicais (até onde sei). Sua arte era a escrita. Tão influenciada, regrada e convivida com o jazz até a medula. Eram considerações do tipo que remoíam minha mente ao começar a ler a autobiografia de Charles Mingus, obra quase tão famosa e mítica quanto o seu próprio trabalho musical. Bastam alguns parágrafos para perceber que uma acompanha a outra. Sua escrita é jazz.

Tanto que, na verdade, tentei uma certa experiência pessoal. Coloquei ‘Pithecanthropus Erectus’ no som e abri o livro.

Mesma cadência, mesma batida, o nervosismo sísmico, a experimentação, a busca, a descoberta de sonoridades tão inusitadas, a empolgação em cada nota e em cada letra. A música bate no coração, imprime uma profunda inquietação. ‘Pithecanthropus Erectus’ tem a capacidade de me deixar inquieto, sedento, desassossegado, jazz sempre fez isso comigo, e com Mingus atinge graus máximos de adrenalina. Nunca precisei realmente de drogas para viajar, me tirar do eixo. Livros faziam por. Música alucina.

Mingus poderia contar de sua vida e já seria algo de extraordinário, sua luta, dores e música são o suficiente para impressionar e fazer pensar. Ele vai além do que, simplesmente contar sua vida. Gosta de inventar, de buscar, tanto em um quanto em outro. Não basta simplesmente narrar. Ele ousa, plaina, voa, inventa, sola, deixa a mão correr. Para começar, o livro é em terceira pessoa.

Uma autobiografia! em terceira pessoa é, no mínimo, uma novidade. De imediato cria uma sensação de estranhamento e de reflexão. Mas é só o começo. Longos planos narrativos, monólogos e escrita quase automática (solos?) se alternam com momentos em que muitas vozes se acompanham e se interpenetram, em um jogo narrativo fascinante e palpitante.

Veja-se, por exemplo, o capítulo quando ele conhece o pianista Art Tatum: sem fazer nenhuma interrupção, cada parágrafo é um ‘diálogo’ com pessoas diferentes, que se substituem, criando um efeito de fluidez impressionante. A conversa com o pai (onde reafirma sua opinião de que existe sangue branco na família, eles seriam descendentes diretos de Lincoln!) ao desabafo com a mãe: voleios amplos, solos de um instrumento, de uma voz. O nascimento do primeiro filho, a rapidez das situações, pequenos trechos detonando e exibindo um virtuosismo pleno, e com poucas notas, frases, distinguindo nuances e insinuações; com poucas linhas, revela todo o fracasso de um relacionamento.

Cada capítulo, portanto, tem um movimento diferenciado, é uma experiência renovada, pois nunca se sabe não só o que será narrado, mas principalmente, o compasso. Mingus se revela um escritor extraordinário tanto quanto músico!

Minha experiência, no entanto, foi um fiasco. Frustrado, não conseguia ler seu livro enquanto ouvia sua música. Tentei outro disco, mas o resultado foi o mesmo. Não entendi. Ok. Deixei rolando uma rádio de jazz e a deixei de fundo. Concentrado na leitura, só depois de algum tempo percebi que a coisa fluía e, curioso, parei para prestar atenção no que estava tocando. Chet Baker. Chet Baker?! Entenda-se, nada contra Chet, mas nunca imaginaria que sua voz ‘aveludada’ pudesse ser um contraponto perfeito a Mingus.

Porém, pensando um pouco, até que faz um certo sentido. ‘Pithecanthropus Erectus’ mexe com as sensações e exige atenção, tornando impossível uma aproximação média. Tal qual sua obra musical em si (nem pensar em simplificações e deixar ‘Pithecanthropus Erectus’ como exemplo-mor e/ou único de sua mestria, como já vi alguns fazerem…), há um trânsito intenso e constante entre as raízes e as experimentações, resgatando a história e prenunciando um free jazz, por exemplo, compassando momentos até líricos com fervorosa e feroz plataforma política contra a discriminação e o racismo.

A primeira edição de ‘Beneath the Underdog’ (“SAINDO DA SARJETA” até que é uma boa solução para o título, mesmo que transversal) é de 1971, uma época relativamente calma em sua vida, depois do inferno pelo que passou na década de 60. Altos e baixos, interrupções na carreira, tratamentos médicos (inclusive psicanálise) e saltos de genialidade, foram sempre sua marca, nunca poderia ser ‘normal’ e foi assim até sua morte em 1979. ‘Saindo da Sarjeta’ é uma obra-prima literária escrita por um artista que não se conformaria em fazer por menos.

 

 

Garagem Lírica. Orfanato Portátil. Marcelo Montenegro.

11 de junho de 2012

 

Eu caminhava desavisado pela vida, ignorando os sinais, desprezando os movimentos à minha volta, desacreditando que pudesse haver alguma coisa de qualidade e substância nessa massa subjetiva que pode-se chamar de poesia moderna. De uma certa forma, compreendo as pessoas que pensam que poesia, qualquer poesia, é necessariamente chata por definição, pois eu mesmo participei dessa ignorância.

ok. Aí me deparei com um livrinho chamado ‘Orfanato Portátil’. ‘Hum. Poesia’, pensei antes de abrir o volume. O choque que senti foi tremendo. Tive que revisar e repensar tudo o que eu conhecia e sentia antes. Intrigado, tentei entender como era possível uma junção tão potente entre uma simplicidade de forma, sem palavreado esquizofrênico ou castiço, e sua mensagem forte, afiada, urbana e deliciosamente bela. A utilização das imagens do cotidiano comum, a linguagem prosaica e popular conduzindo a momentos de epifania explosiva.

Ainda não é isso. Tou aqui sentado em frente ao computador tentando reproduzir minhas sensações e, no entanto, consigo somente reduzi-las, pois a minha própria escrita é insuficiente. Creio que pego, um certo, fio da meada quando ele diz das coisas aparentemente simples, a ‘simplicidade sofisticada’, e percebo que é bem por aí.

Sei que, depois do ‘Orfanato’ conheci o ‘Tranqueiras Líricas’, o hiperdimensionamento de sua poesia com a música, o espetáculo poético sensorial produzido com a lírica e o som da guitarra magistral de Fábio Brum, e só posso dizer que é necessário tê-lo assisitido para saber que se cumpriu uma etapa fundamental na mentalidade e sensibilidade de qualquer pessoa. E há o ‘Melodrama Blues’, especificamente, a espantosa síntese de um estado de espírito, a descrição e a definição de um grupo de companheiros que podem não ser exatamente gentís com o mundo, mas possuêm uma prática e uma relação entre si e com sua arte, literatura, música, teatro, cinema, desenho, o que for, que ultrapassam as regras puerís e limitadoras do ‘bom tom’. ‘Melodrama Blues’ precisa de uma aprofundamento maior do que estes pensamentos soltos. Quem sabe mais pra frente. E se descubra assim o quanto este poema é um verdadeiro marco.

Ainda continuo intrigado. No mais positivo sentido possível.

Durante um bom tempo, ‘Orfanato Portátil’ esteve esgotado, com circulação restrita aos poucos donos felizes de um exemplar. Durante um outro (bastante) tempo, seu livro seguinte, ‘Garagem Lírica’, já está pronto, guardado e ansioso para ser lançado, mas Marcelo Montenegro não via sentido publicá-lo se não houvesse uma reedição de ‘Orfanato…’. A editora Annablume comprou a ideia e, afinal, o universo está se alinhando no caminho certo.


Marcelo, estamos vivendo em tempos estranhos. Sem dúvida que o moralismo hipócrita, o cerceamento do pensamento, a falta de oportunidades ao artista, a vigilância do comportamento, a violência e a ignorância sempre estiveram presentes em nossa vida cotidiana, em maiores ou menores graus, conforme a ocasião. Tenho a impressão, no entanto, de que estamos atingindo níveis impressionantes. Concorda com isso ou acha que estou exagerando? Como a poesia se relaciona com essa realidade premente, hoje em dia? Há espaço para um ‘fazer’ poético que surja naturalmente deste nosso cotidiano? Ou é necessário construir uma ‘forma’ poética completamente nova?

Uma vez perguntaram ao Robert Creeley se “havia futuro para a poesia num mundo mercantilizado”. E ele respondeu: “Tanto quanto existirem pessoas nele”. Concordo contigo, o nível tá impressionante mesmo – sem falar na miséria indecente, nesse açougue que é a prostituição da intimidade de celebridades e sub-celebridades e mais uma porção de etcs. De outro lado, porém, a gente não pode subestimar o fato de que em qualquer período da história da humanidade, em qualquer biboca do planeta, sempre teve e continuará tendo pessoas que, mesmo que poucas, mesmo que anônimas, reagem a tudo isso. Que não se subordinam a leis e a modelos de comportamento imbecis, os inadequados. O Leminski, se não me engano, dizia que a poesia é uma espécie de reserva ecológica da linguagem. E eu acho que todos aqueles que não se conformam são um pouco isso também. Uma espécie de reserva humana. Os “que deitaram fora a máscara” do Fernando Pessoa, os “tristes homens azuis” do Marcos Prado, os “que estão loucos pra viver e jamais dizem coisas comuns” do Kerouac, os “imaturos” do Gombrowicz.

Quanto à poesia nisso tudo, todos que trabalham com ela, ou qualquer outro tipo de criação, estão metidos até o talo, são produtos inevitáveis desse tempo. Aí cada escritor lida com isso de um jeito. Tem um historiador, por exemplo, que diz que toda história é contemporânea. Se alguém escreve, agora, sobre os hititas, fatalmente está falando algo dos dias de hoje. O que eu quero dizer é que você não precisa citar, sei lá, terroristas árabes ou o desabamento das Torres Gêmeas. Se tem a ver com o texto, ótimo. Mas isso, por si só, não quer dizer nada. Numa outra chave, não precisa repetir – no sentido dos quinhentos quilos nas costas – os procedimentos de linguagem dos chamados inventores. O Bruce Springsteen tem um lance genial. Ele fala que o que todas as grandes obras fazem é te oferecer “pontos de partida” para a sua própria. Só isso. E tudo isso! Cada um faça o que tiver a fim de fazer, mas me incomoda quando algo soa forçadamente contemporâneo, enganosamente moderno, sabe?

Lógico. Tem o lance de que a maioria tende a ver “mais contemporaneidade” nos rebuscamentos do que na simplicidade, por exemplo. E não é difícil entender isso. Nas coisas aparentemente simples – o que eu costumo chamar de “simplicidade sofisticada” – os, digamos, componentes de atualidade, o engenho literário, a recusa ao fácil, são mais sutis, menos evidentes. Eu sempre penso que enquanto o Godard radicalizava cada vez mais, e corajosamente, suas idéias do cinema como anti-espetáculo, o Truffaut fez, também corajosamente – esse é o ponto – “Noite Americana”. Que o Domingos Oliveira fez “Todas as Mulheres do Mundo” em pleno domínio do Cinema Novo. Que no auge dos anos de chumbo, poucos soltaram berros como os de Roberto e Erasmo em “Se você Pensa” ou “Sua Estupidez”. Então, como brinca meu amigo Mario Bortolotto, “existem mil maneiras de se preparar Neston”.

 

– Influências, influências. Você já se referiu à admiração e o respeito que possui em relação à poesia de João Cabral de Melo Neto. Embora formalmente seus trabalhos sejam distintos, há uma forte relação de companheirismo, de emoção, de paixão. Isso acaba influindo no seu texto?

O que mais me encanta no João Cabral de Melo Neto é como as palavras se relacionam dentro de cada poema. Há um contato – seja por atrito ou combinação inesperada – geométrico e apaixonante entre elas. O Augusto de Campos, no Poesia da Recusa, diz que o que caracteriza a condição do poeta moderno “não é tanto a objetividade exteriorizante ou a introspecção lírica, mas a autonomia do discurso poético”. E cada poema do João Cabral é exatamente isso: um organismo autônomo, e vivo. Não há nada que sobre ou falte. É um bloco. Ético e estético. Como um filme do Clint Eastwood.

Guardadas todas as óbvias proporções, tento sempre construir, do meu jeito, esses organismos autônomos. Tem também um verso inesquecível no poema que o Cabral dedica ao Vinícius (“Camarada Diamante”): “de quem por incapaz do vago/ quer de toda forma evitá-lo”. Sem falar na “mão contida e extrema”, que tem a ver com o Yeats, outro poeta que gosto muito: “todas as revisões que fiz foram no sentido de deixar meus poemas menos poéticos”. Enfim. Eu sempre digo que meus textos são um misto de João Cabral e Jerry Seinfeld.

 

– Literatura, cinema, música, cotidiano, tudo se amalgama e se transforma em sua escrita, no qual um exemplo maravilhoso foi o lance que surgiu de um papo com o Ademir Assunção e da noite que ele ficou assistindo Hitchock. Como foi isso?

A gente tava bebendo e conversando nos Parlapatões, na Praça Roosevelt. Uma hora um amigo nosso, o Cassiano, liga chamando o Ademir Assunção pra vir tomar uma com a gente. E o Ademir disse que tava mais a fim de ficar em casa aquela noite, já tinha até separado um filme do Hitchcock pra rever. Algo assim. Eu tava do outro lado da mesa e não ouvi o papo. Aí o Mario Bortolotto – que estava sentado ao lado do Cassiano – fala pra mim: “Aí Marcelão, ó o programão do Ademir pra hoje à noite. Vai ficar em casa revendo um Hitchcock”. Rimos, lógico. É o tempo todo um rindo e alugando o outro. Na verdade, a maioria dos meus amigos mora naquela categoria inclassificável de inadequados que tentei esboçar, meio romanticamente, até, na sua primeira pergunta. E esse convívio é uma influência por si só. Falei pro Marião: “pô, isso dá uma música hein? Revendo Hitchcock”. E ele, “pode crer”. E um segundo depois já emendou o que viria a ser o refrão: “Eu tô de bode/ Revendo Hitchcock”. No dia seguinte esbocei uma letra e mandei por email pro Mario e pro Ademir (que nem sabia direito da história ainda). A idéia era que os dois a melhorassem. Mas o maluco do Mario musicou a letra, do jeito que eu mandei, naquela tarde mesmo. Ficou do caralho. Um rockzinho swingado, contagiante.

 

Postal

Daqui a 30 anos, digamos,
que alguém leia este poema.
Todos os pequenos laços
que o ligam ao mundo
fora dele e à vida de um
poeta fudido entre milhões
de pessoas lugares motivos não estarão
mais aqui para socorrê-lo.
Daqui a 30 anos a coisa
será somente a coisa mesmo.
Uma cápsula amputada do tempo,
um bife arrancado do amor.

(in Garagem Lírica)

 

Mapas

Mapas malucos em muros úmidos.
Bolhas num adesivo.
Dedo cortado por uma página.
O espanto é um bairro
no olhar do meu filho.

“Não se salva um navio
não o construindo.”
Cicatrizes mudas
no braile do carinho.

As janelas dos carros
fatiando meu reflexo.
Um esguicho de música
no cofre do ouvido.

(in Garagem Lírica)

 

Robert Creeley Band

Monga, a mulher-gorila:
na dúvida, rindo da vida;
aqui, grudada no corpo,
como uma calça jeans
encharcada de chuva –
a preparação do salto
na cabeça do cervo morto.

A musa fatiada na véspera
do mágico. E o jeito encantador
com que a executiva
mexe o canudo
no copo de suco.

Na quermesse dos sentidos,
onde a noite troca de pele
com o dia – O céu esfolado,
anjos em velocípedes –
A esfiha que sobra
na lanchonete que fecha –
Onde o espanto
lustra seus rifles.

(in Garagem Lírica)


 

Sinopse

Canetas que falham ao lado do telefone.
O baque das havaianas na escadaria.
O labor sigiloso de um poema.
Um gemido de geladeira
nalgum ponto perdido do dia.

Um copo que nosso brusco
e cômico malabarismo
evitou que se quebrasse.

(in Orfanato Portátil)


 

Matinê

Às vezes saio do cinema
E me ponho a andar
Cartografias pessoas
Apenas olhar
Ter a leve impressão
De que a cidade está grávida
De um outro lugar

(in Orfanato Portátil)


 

Exile on Main Street

O balde azul claro. O velho quintal.
O cabeçote sujo da memória.
Um filme que se soletra, a tacape, desde o fim.
Forte apache. Benflogin. A lisura do serviço.
Que ser moderno, meu bem, dá nisso.
Poemas sóbrios, beges, concisos.
E evitar no poema palavras como: Bugiganga.
220 volts. Rick Wakeman é o Olavo Bilac do rock.
Nem todo perna de pau tem seu dia de craque.
Estelionato. Western Spaguetti. Birra de criança.
Charme incerto de forasteiro, baby.
Que o cachê cobre a fiança.

(in Orfanato Portátil)

 

entrevista resgatada, por estar perdida no meu antigo site, para comemorar o lançamento e re-lança dos livros de Montenegro; os poemas e mais informações no seu blog http://tranqueirasliricas.wordpress.com

Entre ‘Nooks’ e ‘Kindles’, quem acaba censurado é Tolstoi

4 de junho de 2012

Nenhuma tecnologia salva da burrice. Ainda mais quando misturada com ganância comercial que deixa acontecer, ou nem se importa com, deslizes idiotas. Abaixo passo o link para a história completa, mas só para dar uma ideia da palhaçada: de um lado, o aparelho leitor de e-books, e-reader, da Amazon, chamado Kindle; do outro, o e-reader da Barnes & Nobles, chamado Nook. Certo. A Barnes & Nobles edita e-book do Guerra e Paz, de Tolstoi, a um preço bem baratinho. Até ai, nada a declarar, certo?

Até que um blogueiro norte-americano, que comprou uma edição dessas da Barnes (para ser lida pelo aparelho Nook, não se esqueçam) começou a reparar na ocorrência de várias vezes da palavra ‘nookd’. O estranhamento foi aumentando até que ele foi conferir na sua edição de papel, se também havia aquela palavra ou se ele tinha se distraído e descobriu que, na verdade, a palavra estava traduzida como ‘Kindle’.

Não é uma beleza? o pessoal da Barnes não queria que a palavra com o nome do concorrente aparecesse e simplesmente passou o corretor automático, sem se tocar que a palavra aparecia muitas vezes e há frases que o seu termo ‘nookd’ simplesmente não servia!

Não nos enganemos: bobagens e estupidezes do gênero sempre aconteceram, desde que o ser humano resolveu descer das árvores e inventou um troço chamado ‘livro’. Acontece que essa tal tecnologia que permite que tais bobagens moderníssimas aconteçam também proporciona que sejam descobertas com mais facilidade e, mais importante, sejam divulgadas com mais rapidez ainda.

Segundo o Fabrício Vitorino, do site Techtudo, nem a editora Barnes and Noble nem a fábrica dos e-readres Nook se pronunciaram ainda. E, na verdade, fica até difícil saber o que se responder nesse caso. Alguém arrisca um palpite?

http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2012/06/e-reader-nook-censura-palavra-que-da-nome-ao-rival-em-livro-de-tolstoi.html

 

 

 

 

O Botão de Puchkin

28 de maio de 2012

 

Serena Vitale nos faz mergulhar nos quatro últimos meses da vida de Puchkin, o poeta nacional da Rússia. Mais do que uma simples biografia, no entanto, ela compartilha conosco toda a emoção da pesquisa, das informações desencontradas e dos debates acalorados que até hoje persistem. Ela nos conduz pelos labirintos das intrigas, nos faz presenciar a caça de documentos, de cartas escondidas, de outras desaparecidas para sempre e de outras que somente agora vieram à luz. Um verdadeiro trabalho de detetive e de dedução, tentando separar os fatos dos simples boatos, as acusações das maledicências puras, para somente depois de muita procura e averiguações, tentar chegar a alguma conclusão. Ela nunca faz uma afirmação sem especificar de quem foi buscar a informação e tentar entender a sua validade e veracidade.

As circunstâncias da morte de Aleksandr Puchkin ainda estão cercadas de muita polêmica. Não do duelo em si: no dia 27 de Janeiro (8 de Fevereiro, segundo o Calendário Juliano) de 1837, o poeta duelou com pistolas com Georges d’Anthès, um oficial francês que havia pouco tempo tinha se incorporado na guarda russa e se casado com a irmã da mulher de Puchkin, Natalia. O casamento provocou um verdadeiro furor na alta sociedade russa, pois todos sabiam (ou comentavam, ou fofocavam) que ele havia se casado somente para poder disfarçar sua verdadeira paixão, Natalia. Mas as investidas de D’Anthés não teriam parado mesmo com o casamento e Puchkin o desafiara, afinal, para defender sua honra. O poeta recebeu um tiro no estômago e morreu depois de três dias de agonia.

As paixões e os sentimentos aqui envolvidos complicam esta história que, em tudo, lembra o enredo de uma novela romântica, inclusive de algumas escritas pelo próprio Puchkin. Quando morreu, o poeta gozava do auge de sua fama. Estava somente com 37 anos de idade, mas já tinha moldado toda uma literatura: era o líder (e praticamente o fundador) do movimento romântico russo; suas baladas e suas sagas de personagens históricas, escritas em formas de versos, buscavam inspiração nas raízes culturais e folclóricas nacionais; foi o primeiro a utilizar a linguagem popular, cotidiana, em seu trabalho literário, criando uma mescla de beleza e alto rigor lingüístico ao mesmo tempo em que popular e acessível. É reconhecido como o criador da língua moderna russa.
É um verdadeiro herói em sua terra. A cada ano, uma caravana se dirige ao seu túmulo na data de sua morte levando velas e flores, passando a tarde declamando seus poemas.

Além disso, Puchkin era um satírico mordaz, um crítico inteligente e divertido, o que certamente só aumentava sua popularidade. Se como poeta podemos compará-lo ao romântico Lorde Byron e, como formador cultural, ao também romântico Goethe, como satírico é inevitável pensar em Voltaire, com a mesma crítica social e sátira corrosiva.

E há o mesmo relacionamento de amor e ódio para com a aristocracia. Mesmo não fazendo parte de nenhum partido político de oposição (potencialmente perigoso para uma sociedade dominada pela feroz autocracia czarista), ele incomodava e dava muito trabalho para os censores que, em troca, eram constantemente fustigados pelas palavras impiedosas do poeta.

Fama e popularidade, no entanto, não se traduziam em dinheiro. Nascido em família nobre, mas empobrecida, mesmo assim conseguiu casar com a mais bela moça da família Gontcharov. Todas as descrições são unânimes: por onde quer que passasse, Natália Nikolaevna brilhava e ofuscava todas as outras beldades, despertando a inveja das mulheres e a admiração dos homens.

E praticamente por aí acaba a unanimidade. Qual a personalidade de Natália, quais as suas idéias e sentimentos, é impossível saber. Não existe documentação, nenhuma carta sobrou. Ela está muda para nós. Só podemos ouvir os murmúrios de outros, percebemos ecos pelas cartas de Puchkin que chegaram até os dias de hoje. Sabemos que gostava de participar dos bailes, onde era a rainha incontestável. Palavras maldosas nos dizem que tanta beleza era uma magnífica capa para uma pessoa frívola e coquete cujo único propósito na vida era justamente (e somente) dançar. A verdade se dispersa no meio dos murmúrios.

Georges D’Anthés também não é fácil de discernir. Execrado pela sociedade russa, expulso das forças armadas do país, voltou para a França em desgraça. Sua vida estabilizou-se, viveu longamente (até os 83 anos) tornou-se político, anos depois foi embaixador designado pelo próprio Luís Bonaparte para fazer negociações (ironia das ironias!) com o czar. Até onde ele teria ido em suas investidas em Natalia Puchkina? Até onde ela teria cedido? Até que ponto tudo foi uma brincadeira inconseqüente? Ou uma traição consciente?

A grande qualidade do texto de Serena Vitale é o modo como ela consegue nos fazer sentir como se estivéssemos participando junto com ela desta investigação. Batemos cabeça, nos desesperamos com a falta de informação ou ficamos perdidos com tanta informação desencontrada. De repente, ela pára a narrativa, nos traz para o presente, diante de um baú da família dos descendentes de D’Anthés e encontramos cartas! Com emoção, abrimos os envelopes e gritamos de alegria: buracos inteiros da história são finalmente revelados, dúvidas são esclarecidas, a busca paciente valeu a pena. Tudo bem que novos problemas sejam colocados, isso também faz parte.

Um exemplo particularmente interessante é sobre as cartas anônimas. Alguns meses antes de sua morte, Puchkin e vários outros membros da sociedade receberam cartas anônimas dizendo que o poeta teria aderido ao Clube dos Cornos. Irascível, passional, ciumento, briguento, sensível para os mexericos desta sociedade que conhecia tão bem, Puchkin não precisava de muito mais para desafiar D’Anthés. Estaria ele também convencido da frivolidade de sua mulher ou foi somente para resgatar a humilhação do seu orgulho ferido? O fato é que estas cartas, das quais existem ainda duas cópias, foram a gota d’água.

Sua autoria nunca foi estabelecida ou provada, embora as discussões tenham sido intermináveis. Vitale repassa todos os possíveis culpados, compara suas letras, julga os possíveis (e os necessários) dotes culturais para a feitura da redação, relaciona os graus de amizade e relacionamento com a alta sociedade russa e, no final, com relativa segurança, indica-nos quem, na sua opinião, teria sido o responsável.

A impressão é que Vitale sabe tudo, leu tudo, conhece todo mundo. Para a autora, não se trata de personagens históricas, mas gente de carne e osso que amou, sofreu, odiou. Mais do que isso, ela consegue transmitir essa compaixão e sua empatia em um texto emocionante que lemos como se fosse um romance policial; viramos as páginas sofregamente, ansiosos não só para descobrir as novas revelações, mas o modo como isso foi feito. E para o leitor que for fisgado (o que é fácil, basta começar a ler) e chegar até o final, Serena Vitale nos recompensa com o fruto desse esforço, uma extraordinária e impactante conclusão.

Sem dúvida, um belo e instigante livro que consegue fazer do ato de escrever seu verdadeiro personagem principal.

 

 

Feras no Jardim – Don’t Let’s Go to the Dogs Tonight

13 de maio de 2012

 

O apelido de Alexandra Fuller quando criança era Bobo. Um detalhe semântico aparentemente ínfimo diante de todo o contexto de sua infância, mas que, no final, adquire uma impressionante importância. Essa infância deveria ser a mais comum possível, com algumas vantagens adicionais. Isto é, seus pais eram brancos, de origem inglesa (portadores, portanto, de uma intensa e antiga carga de comando imperialista) e viviam em um continente onde a ínfima minoria branca comandava, dirigia e explorava: a África.

Qual o problema, então? Acontece que estes mesmos pais eram alcoólatras, neuróticos e fracassados social e economicamente, que já haviam morado na África e voltaram por não terem conseguido construir uma vida razoável em sua terra natal. Sua mãe era maníaca depressiva, principalmente depois de perder três filhos em idade pequena e dizia que o nascimento de Bobo havia sido encaminhado somente para compensar a morte do seu filho anterior. E, mais do que tudo, esta família branca, racista, neurótica e prepotente vivia em uma África convulsionada em plena guerra civil. A qual seria vencida pelos africanos negros quebrando finalmente a longa tradição colonialista.

A infância de Bobo foi marcada, então, pela intensa necessidade de encontrar balizas físicas e mentais pela sobrevivência, dia a dia, quase minuto a minuto. Aprendeu a engatilhar armas com seis anos de idade; com oito anos já tinha feito um curso de primeiros socorros aprendido como atividade escolar e saberia cuidar de um parto de emergência, fazer talas e conter hemorragias, embora também lhe fosse ensinado que só deveria cuidar destas coisas se não houvesse nenhum adulto por perto. Isso, aliás, é um eufemismo. A lição era bem clara: se todos os adultos ao seu redor estivessem mortos.

Ir para a escola significava prestar atenção nas encruzilhadas para não serem emboscados pelos guerrilheiros ou utilizar veículos especiais que pudessem passar por cima das minas sem explodi-las. Ir trabalhar na fazenda de tabaco da família ou participar das patrulhas armadas organizadas juntamente com os vizinhos fazendeiros implicava sempre em dúvidas se o seu pai iria voltar para casa ao cair da noite.

Ficar em casa, no entanto, também era perigoso. Como quando uma enorme cobra entra esguichando veneno e sua mãe, péssima atiradora, destrói a sala e gasta um pente inteiro de balas até conseguir mata-la. Ou quando um empregado rouba a família, mata a facadas a criada e tenta fugir pela floresta carregando um enorme saco repleto de quinquilharias.

Os negros vencem a guerra. Os antigos explorados agora estão no poder. A Rodésia muda de nome para Zimbábue. A família de Bobo tenta se adaptar, muda para Malui, depois para a Zâmbia, mas são sempre prepotentes, estão sempre deslocados. Talvez, principalmente, de si próprios (de onde não há mudança possível).

Bobo mergulha em suas memórias, navega pelas dores passadas. Sem complacência, sem autopiedade ou mistificações. Mas, também sem falsos moralismos nem pré-julgamentos. O mais admirável é que Bobo consegue transportar para o papel toda essa realidade crua, forte e chocante sem cair em maniqueísmos simplistas e facilitadores. Ao retratar seus pais de forma tão impiedosa, com todas as suas falhas e defeitos, neuroses e preconceitos, ela retira a frágil aparência das máscaras e desnuda o ser humano.

Não foi fácil alcançar esse ponto. Bobo tentou escrever vários romances tendo a África como personagem principal e as tramas seriam conduzidas pelos núcleos de fazendeiros brancos. Ela diz que não foi possível, algo sempre emperrava, os enredos eram falsos e vazios, os personagens aéreos e sem substância. Morou no Canadá, onde se graduou em literatura inglesa e durante anos começou a escrever sete, oito, nove vezes em seguida. Quando decidiu deixar a ficção de lado e assumiu que precisava escrever sobre sua própria vida, a escrita jorrou e, em poucos meses, o livro estava pronto. Era como se, em sua mente, tudo estivesse preparado; a memória foi o seu grande guia e depositário. Só que, para poder deixar que esta memória extravasasse, não poderia haver invenções nem fantasias. Se a carne tinha que se expor, então teria que ser real, assim como a faca e o sangue. A franqueza e a sinceridade foram suas grandes armas. Ela disse em uma entrevista para a New York Times que seus sentimentos de recalque e culpas pessoais a impediram de se exprimir durante muito tempo: “Então, eu decidi que as pessoas poderiam me acusar de tudo menos de dizer a verdade”. Ela tinha que contar como as coisas realmente aconteceram.

O resultado em “Feras no Jardim” é estonteante.

É óbvio que franqueza e sinceridade não garantem de forma nenhuma qualidade literária. Bobo passa por cima de uma simples narração de fatos chocantes. Estamos diante de uma obra acabada de uma escritora que encontrou sua escrita. O que conta aqui é a habilidade da autora em contar dados dramáticos sem nunca perder um sentido de sutileza e observação psicológica profunda, ao lado de um senso de humor e ironia mordazes. Há humor nestas páginas! Não do tipo que provoca risadas e depois, com a consciência tranqüila e sossegada, esquecemos o que acabamos de ler. É um humor incômodo, pesado, que faz-nos lembrar o quanto a vida é irônica e cruel. E, acima de tudo, verdadeira.

Com tudo isso, o apelido se torna mais do que uma lembrança de infância. É uma verdadeira tomada de consciência de uma africanidade assumida, mesmo que atualmente esteja casada com um norte-americano e viva nos Estados Unidos. Foi na África que conheceu seu futuro marido, pois ele trabalhava como guia de turismo no continente. Seus pais e sua irmã continuam morando em território africano, mesmo que mudando constantemente de país. E ela está desgostosa com a vida de competição e de shopping center norte-americana e não quer que seus dois filhos cresçam comendo no Mac’Donalds e jogando videogames. Por isso, seus planos são de se mudar para a Tanzânia.

O seu nome, Alexandra Fuller, aparece somente na capa do livro.  Bobo, então, é seu nome real e é por ele que ela gosta de ser chamada. Com todas as lembranças, dores e responsabilidades consequentes.

Retrato do Artista Quando Velho

23 de abril de 2012

 

Eugene Pota, personagem-narrador-objeto do último romance de Joseph Heller, é um escritor cujos livros, embora intelectualmente densos, sempre venderam bem. Respeitado, convidado constante para dar palestras, qualquer nova obra tem publicação certa. Aos 73 anos, não possui problemas financeiros e seu casamento com a terceira mulher é estável, apesar de viver dando em cima das mocinhas de 40, 45 anos. Está passando, porém, pelo terror de todo escritor, ou mesmo de qualquer pessoa que alguma vez tentou colocar um pensamento no papel: a falta de inspiração. No ocaso da vida, sua vontade é de escrever uma obra-prima que tivesse o mesmo sucesso retumbante de suas primeiras obras e, quem sabe, até fosse vendida para Hollywood. No entanto, nenhuma idéia decente aparece; nada que o faça retomar o antigo entusiasmo. Como escrever algo que já não tenha sido dito, e melhor, por outras pessoas de talento, inclusive ele próprio?

Em desespero, se volta para obras consagradas e começa a parodiá-las. Tenta uma versão atualizada da “Metamorfose”, de Kafka, desta vez na Manhattan do final do século XX. Joga-a fora. Vira-se para a Bíblia e tenta imaginar como seria o relacionamento entre Deus e sua Mulher. Mas isso acabaria em uma outra variação irônica da Criação, de Adão, de Eva. Quantos já não fizeram isso? As infidelidades de Zeus contadas por sua mulher, Hera. A vida de Tom Sawyer adulto. O sacrifício de Isaac, do ponto de vista de Isaac. Nada. Nada. A única idéia que lhe parece interessante e que consegue arrancar um saudável sorriso irônico das pessoas ao seu redor, quando anunciada, seria um romance com o título “Uma Biografia Sexual de Minha Mulher”. Mas ele nunca consegue avançar além do título.

Retrato do Artista Quando Velho” foi escrito por Heller aos 76 anos, pouco antes de morrer. Ele não viu a obra ser publicada. É, pois, um inquietante e incômodo relato fictício/autobiográfico. A estranheza vem do fato de que Heller não poupa a ironia pesada e o sarcasmo ao se retratar, ao comentar suas idiossincrasias e manias de velho, suas incertezas de escritor, as dúvidas sobre a qualidade de sua obra, suas infidelidades amorosas, que só não são efetivadas pela sua decadência física. Ao contrário do seu alter-ego Eugene Pota, no entanto, Heller tem a escrita bem firme e esbanja talento, humor (mesmo que cáustico e, no mais das vezes, bem melancólico), e elegância de estilo. Na verdade, os trechos ‘escritos’ por Eugene do diário de Hera são muito engraçados e a versão de Kafka merece figurar em qualquer antologia. Com a ironia já começando pelo próprio título, uma referência direta do clássico “Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce, e mesmo o nome do personagem, Pota, é derivada dessa brincadeira (Portrait Of The Artist).

Joseph Heller é considerado um dos mais importantes escritores norte-americanos do século XX. Nascido em 1923, escreveu vários contos e artigos de prestígio, quando lançou no começo da década de 60 uma novela que o consagrou mundialmente, tanto pela crítica quanto pelo público: “Ardil 22”, uma sátira arrasadora da Segunda Guerra Mundial, utilizando sua própria experiência como aviador. Esse livro foi filmado na década de 70, também com bastante repercussão. “Ardil 22” penetrou tão fundo na consciência norte-americana que se tornou um dos símbolos máximos do movimento antibélico e foi tomado como estandarte pelos militantes contrários à guerra do Vietnã. E, segundo o jornalista e escritor Marcelo Barbão, “Catch 22” até virou uma expressão popular, significando uma situação onde não há vencedores.

Heller nunca deixou de escrever, até morrer de infarto em 1999. Sua obra inclui vários outros romances, contos, ensaios, peças de teatro, artigos. Sendo assim, seu último livro se torna, portanto, o seu testamento literário, um auto-ajuste de contas, uma lavagem de roupa suja consigo mesmo, refletindo suas preocupações sobre a vida, o peso da idade, a literatura, fracasso pessoal, a busca por um sentido para sua existência.

Em uma entrevista para Barbara Gelb em 1994, pode-se perceber como isso estava presente em sua mente. Em um determinado momento, ele diz como ficou impressionado ao constatar o quanto a profissão de escritor havia levado tanta gente ao desespero existencial, desembocando no alcoolismo, depressão, suicídio.

Quando Gelb pergunta se ele estava indo pelo mesmo caminho, responde, enfaticamente: “Não… ainda. Eu estou indo muito bem, emocionalmente. Ou, pelo menos, acho que sim”.

Isso acabou se refletindo em algumas das páginas mais impressionantes de “Retrato…”. O jovem Tom Sawyer cresceu e agora quer se tornar um escritor. Vai em busca de conselho. Naturalmente, tenta se encontrar com a pessoa que se tornou famosa as suas custas, Samuel Clemens, mais conhecido como Mark Twain. Ao chegar ao seu endereço, no entanto, constata que Twain está percorrendo o país com palestras pagas para conseguir cobrir as vultosas dívidas contraídas com suas aventuras comerciais. Mais tarde, fica sabendo de suas tragédias pessoais, a morte da esposa depois de uma grave doença, a morte da filha afogada em uma banheira ao ter um ataque epiléptico, o próprio fim melancólico.

Tom Sawyer tenta falar, então, com o lendário Jack London, o protótipo do self-made man norte-americano, criador de obras imortais como “Caninos Brancos”, “O Chamado Selvagem”, exemplo do homem que ficou milionário com literatura. Ele, porém, estava viajando pelo Havaí. E se suicidaria ao voltar. Sawyer acaba indo para Inglaterra encontrar Stephen Crane, autor de “O Emblema Rubro da Coragem”, mas este morrera na Alemanha, de tuberculose, carregado de dívidas, aos 28 anos. Dos ingleses, Henry James vivia recluso e deprimido pelo desprezo da crítica por suas últimas obras, como “Os Embaixadores”, “O Cálice de Ouro” (que só seriam reconhecidas como obras-primas depois de sua morte) e invejoso do sucesso da norte-americana Edith Wharton (que, apesar disso, era explorada por um marido alcoólatra que roubava seu dinheiro). E mais: Bret Harte, Joseph Conrad, todos com histórias trágicas.

Sawyer, horrorizado, desiste de ser escritor e volta para junto de sua tia Polly, decidido a se tornar ferroviário.

Eugene Pota/Joseph Heller chama a isso de Literatura do Desespero.
Heller conduz sua escrita com absoluta precisão. Da comédia desbragada ao drama, da celebração da vida à melancolia do cotidiano. Emocionante, engraçada, sensível, satírica. É uma lição de pura literatura.

cena do filme 'Ardil 22', baseado na obra de Heller

 

 

Habitante Irreal, de Paulo Scott, uma jornada ética, um livro absurdamente necessário

29 de março de 2012

 

Acabei de ler, emocionado e contente ( e finalmente, pois o livro foi lançado ano passado) a última obra do contista, romancista e poeta, Paulo Scott, o ‘Habitante Irreal’.

Que belíssimo livro, que literatura sofisticada, que trabalho maduro, tão bem construído (apesar de algumas imperfeições), fluido e agradável de ler (uma leitura extremamente prazerosa) com uma narrativa de aparência simples, à primeira vista, e com um universo de intenções e interpretações possíveis como embasamento. Embora inicie-se como uma reflexão política, através da trajetória de um militante desiludido, a obra não finaliza como um manifesto e sim como uma reflexão profunda sobre escolhas éticas (ou falta de) e de suas consequências (embora imprevisíveis, inexoráveis, algumas trágicas).

Durante esse tempo desde seu lançamento no ano passado, me abstive de ler críticas ou comentários afora, minha pretensão era de chegar ‘puro’ à obra, sem intermediações de pensamentos alheios. Não foi uma pretensão muito bem realizada, acabei vendo alguma coisa ou outra, embora tenha realmente tentado me desligar de outras opiniões. A minha expectativa era grande, por motivos intelectuais, literários e pessoais, e tinha receio de ser novamente decepcionado, como aconteceu algumas vezes (e há pouco tempo). Portanto, neste primeiro parágrafo, antes de prosseguir eu gostaria de deixar claro dois pontos primordiais, duas recomendações: não leia este meu texto. Não neste momento, pelo menos. Não forme preconceitos; vá de cabeça limpa, esqueça esse pobre resenhista. Pois minha segunda recomendação é Leia o livro Agora, de Imediato, pois é dos mais importantes que apareceu na literatura brasileira nos últimos anos.

Dito isso, também devo enfatizar que posso cair em uma apreciação não muito isenta. Há muitas questões externas a uma análise de pretensa objtetividade que podem comprometer meu pensamento, o que  reconheço desde logo ser uma lástima. Tentarei deixa-las todas claras à medida que ocorrerem. Ao menos, prezarei a sinceridade.

Para uma primeira aproximação, o básico: a linha narrativa e a construção formal da linguagem. O enredo é simples. Paulo é um militante do PT no final da década de 80 (o livro começa bem especificamente, em 1989), desiludido e desanimado com os caminhos de acomodação política e de disputa de poder que o partido está tomando, mesmo que saiba ser o rumo óbvio de um grupo que, afinal, está conquistando seu espaço. Paulo sabe, também, que seria fácil seguir os mesmos passos, montar as peças de uma carreira, e se destacar; tem cacife, anos de militância e um certo reconhecimento. Porém, percebe que isso o deixa completamente apático, não possui essas ambições, e vê-se, assim, desprovido de perspectivas. A mudança abrupta em sua vida acontece quando conhece uma índia adolescente, Maina, parada ao lado de uma estrada, a quem oferece uma carona. A carona evoluirá para um relacionamento e para acontecimentos que remodelaração suas existências e não necessariamente para o melhor. Por mais previsível que seja, porém, a tragédia não deixa de ser inevitável. Os caminhos se bifurcam, as rotas pessoais se dividem, Maina engravida, Paulo se muda para Londres, outros personagens e outras histórias aparecem e tomam conta da narrativa, e mesmo Paulo retoma, sua importância é relativizada, outras são as preocupações, assomando-se assim uma primeira grande questão: Quem é, de fato, o personagem principal, e para onde ele, e o romance, nos levam.

Não é uma falsa questão. Quando, ao acabar a minha leitura, fui colher curioso o que outros teriam dito e como foi a reação geral, percebi que há uma grande confusão, mesmos entre aqueles que elogiaram a obra. Constatei, divertido, a irritação de quem pensou que o livro não leva a lugar algum. São os que interrompem sua interpretação somente por meio da história, e perdem suas inferências. Mais para frente, digo qual a minha resposta e porque a considero tão fundamental.

Formalmente, ‘Habitante Irreal’ é uma surpresa, considerando-se os trabalhos anteriores de Scott. Muito diferente de suas experimentações linguísticas de seus poemas e inclusive de sua prosa: seu livro de contos, ‘Ainda Orangotangos’, exibia uma volúpia luxuriosa e libertária, mesmo que tensa e pesada em alguns momentos, além de trazer um cd no encarte com músicas para serem lidas durante a leitura de cada um dos contos. Seu romante anterior, ‘Voláteis’ aumenta a intensidade, mesmo que adote uma linha mais ‘psicologizante’, o que me fez esperar que ‘Habitante Irreal’ as experimentações fossem aumentar.

Ao contrário. A prosa agora é contida, simples, quase melancólica, mesmo em momentos de crise ou violência, nunca, porém, ‘devagar’ ou parada, pois sempre fluente, sempre em movimento, o que às vezes provoca um belo contraste entre a contenção da palavra e a aspereza violenta da ação narrada. Esse movimento constante da ação está presente o tempo todo, mesmo quando não existe, na verdade, uma ‘ação’ propriamente dita, quando penetramos em seus pensamentos e elucubrações íntimas. Boa parte da narrativa é conduzida assim, aliás, e o fato de sermos tomados e não despegarmos os olhos das páginas é mérito total do controle criativo de Paulo Scott.

Há falhas, no entanto; esse controle é perdido, algumas vezes. Por exemplo, instantes onde se instala uma espécie de ‘didatismo’ (não gostei muito dessa palavra, mas parece expressar o que estou sentindo, por enquanto) quando o narrador paralisa a ação ou insere uma fala que explica em demasia, focaliza um ponto sem necessidade, ou começa a enumerar ítens, um recurso interessante quando bem utilizado, mas que aqui parece tímido, sem que sua potencialidade plena seja atingida, como em uma cena de sexo, quando o personagem começa a citar para si e para o leitor os acontecimentos políticos importantes que o rodeavam naquele exato momento e que deveriam chamar sua atenção. Como painel explicativo da época, o didatismo quase infantil apresentado é flagrante; como recurso estilístico, é fraco e insuficiente.

Para explicar melhor, penso em obras como ‘Quarup’, de Antônio Callado, engajadamente política e militante, que conta a transformação de um padre em guerrilheiro contra a ditadura, quando ao abrir um capítulo, deparamo-nos com a descrição de  uma farmácia da época, com a enumeração de cada um dos itens das prateleiras; minuciosa e exaustiva (até demais) a descrição leva bem umas três ou quatro páginas!, o que tem sua intenção dentro do romance. Outra obra (muito menos importante) que faz isso e possui também um impacto é ‘Viva o Povo Brasileiro’, de João Ubaldo Ribeiro (neste caso, o impacto é negativo, o recurso é em latim, uma bobagem longa, exaustiva e pedante). Na obra de Scott, não é pedante, mas é tímido, sem vigor, sem plena utilidade.

O ‘didatismo’ não me refiro somente aos momentos diretamente políticos. Uma cena que me irritou em particular é quando, em uma conversa sobre trotskismo e de sua vida como militante, Paulo fala de sua existência vazia: “Às vezes tenho a impressão de que só comecei a militar porque queria ser diferente, precisava aparecer, precisava chamar a atenção. Sou um cara vazio, Rener, um cara oco.” Poucas páginas depois, Paulo telefona para seus pais no Brasil (ele está em Londres) e deixa um recado na secretária eletrônica. Frases soltas e clichês, tentativa infrutífera de expressar uma emoção ou um sentimento verdadeiro. É somente um parágrafo, mas a sensação final é de uma pungência pesada e melancólica, que nos diz muito mais sobre o vazio e o oco do personagem do que em todo o diálogo explícito anterior.

O que há de forte, bonito e bem construído nesta obra compensam, de longe, as deficiências fortuitas. O escritor nos conduz aonde quer, domina nossas emoções, nos obriga, de puro prazer, a continuar a leitura. A construção dos personagens é primorosa: entendemos, nos identificamos, nos importamos, ficamos apreensivos com o futuro de Paulo, Maina, Donato, Luisa, Catarina, eles possuem ossos e carne e personalidades, inclusive os personagens passageiros, ‘coadjuvantes’, são marcantes e fazem presença, Rener, Henrique, Passo Fundo, o Espectro, são pessoas. Como seria fácil cair nos estereótipos!, o militante frustrado, a índia nativa, o índio aculturado, o policial estúpido… Eles são isso, só que muito mais, são concretos.

E há trechos poderosos, belos: o final da primeira parte (todo o capítulo ‘desenhos romanos’), a educação de Donato, a consulta de Maina durante a gravidez, a luta com os libaneses. Preciso especificar uma cena: a conversa com a velha senhora, à noite, em uma esquina antes da invasão da casa abandonada: a profunda sensação de estranheza e a bizarrice daquele diálogo, o desconforto quase pânico de Paulo, criam um clima de filme noir ou de literatura fantástica… amei essa cena e, desde já, é um dos trechos preferidos de tudo o que já li.

‘Habitante Irreal’ preenche, ou se pretende, uma falta que a moderna literatura brasileira não se engaja, nem encara: a da feição do Brasil presente como derivado da ditadura militar. Interessante observar como possuímos uma portentosa arte de resistência que, mesmo quando não-explícita (por censura ou auto-contenção), era consciente plena de sua postura. Esse fervor e urgência foram diluindo com os anos, com uma ‘redemocratização’ e uma certa ‘acomodação’ de alívio. Para a geração que nasceu no final da década de 60 e, portanto, passou sua infância e começo de adolescência inconscientes justamente na instalação e maior vigor da ditadura militar, a situação ideológica é muito confusa: somos depositários da mentalidade das grandes utopias do século e participamos do (ou assistimos o) final de uma ditadura dentro um contexto mundial político e econômico completamente diferentes do que nos era posto durante nossa formação pessoal e intelectual, ao mesmo tempo que presenciamos impotentes a derrocada das respostas totalizantes (ou de ‘ilusões prepotentes’, conforme seu foco). A reação geral foi de distanciamento, de não comprometimento, eu diria até mesmo de fuga. Atitude de diametral diferença às adotadas por outros países com históricos semelhantes (veja-se como é absurdamente difícil impor uma agenda de discussão e responsabilização pelos terrores da ditadura e compare-se o que já foi feito nesse sentido em países como Chile e Argentina; compare-se com o que as respectivas literaturas e as artes igualmente refletem). Essa percepção, essa ‘desacomodação’, esse conflito interno, é quase inexistente no Brasil, aparece esporadicamente em pontos esparsos. Só por esse motivo, só por provar que é possível fazer essa discussão no universo artístico, no universo literário, e, mais do que isso, realiza-la de modo tão bem e belamente construída, já valeria um posto único para ‘Habitante Irreal’.

Mas, isso é insuficiente.

Ao término da minha leitura, apesar do meu entusiasmo, estava incomodado. Senti que faltava alguma coisa e fiquei em dúvida se era uma falta de percepção minha ou se havia uma nota discrepante no trabalho de Scott. Demorei um pouco para descobrir que havia caído na mesma armadilha de alguns outros críticos (tanto os favoráveis quanto os discordantes) e ficado satisfeito e paralisado na primeira e superficial apreciação da história e esta, no final das contas, por mais surpreendente que seja, não é o mais importante! Permita-me explicar:

Os grandes saltos temporais, as mudanças geográficas, os pequenos painéis históricos, as mudanças dos personagens principais que se alternam entre Paulo, Maina, Luisa e Donato (os principais, mesmo que não ameacem a preponderância de Paulo, ainda que ele não esteja presente em metade do livro), podem nos fazer pensar em que tudo termine em uma espécie de beco sem saída (literário, o de Scott, e narrativo, dos personagens). Pois há uma pergunta que eu nem imaginava fosse tão importante e se revelou fundamental: quem é o personagem principal? É um desses citados? É o Brasil, como um todo? (Por um momento, pensei que fosse o filho de Maina, Donato, o verdadeiro responsável, e Paulo como um introdutor) Ou talvez uma idéia mais abstrata, a Política? Ideologia?

Creio que quem chega mais perto de uma boa resposta é Carlos André Moreira. Eu fiquei muito feliz de ler seu texto ‘Brincadeira de Forte Apache’ (Zero Hora), principalmente no trecho “O trajeto romanesco de Habitante Irreal é, assim, também um trajeto ético, uma vez que cada decisão parece gerar mais dúvidas e provocar consequências contrárias às intenções que as balizavam na origem.” É esse o principal!

É o que perpassa e fundamenta todo o romance de Paulo Scott e que, afinal, constitui sua real importância e nos explica seus personagens. São estas escolhas, suas consequências, suas aspirações e seus resultados, enfim seus posicionamentos éticos determinam (ou induzem) suas respostas e o que sofrerão de volta. O retorno da realidade é o fruto de suas ações (ou a falta de). A incapacidade congênita de Paulo, ou sua perene falta de coragem, a busca de identidade de Donato, a militância pseudo-anarquista de Rener, impoem, ou ao menos tentam impor, sua marca na vida, em sua existência, mesmo quando se deixam simplesmente levar pelos acontecimentos. Mesmo o ato final de Maina transcende sua pessoa, pois resvala inexoravelmente em outros. São todos responsáveis, todos os personagens, mesmo que as respostas recebidas sejam quase todas dolorosas (o Brasil é um dos personagens, realizar eleições e disputar poder são suas atitudes, o Brasil moderno, seja qual for, é sua resposta). Somos todos responsáveis, mesmo que inconscientes ou inconsistentes, inclusive o autor. Inclusive o leitor.

‘Habitante Irreal’ é um manifesto, sim, mas não político (pelo menos, não somente político). É uma bela obra que levanta a questão do ser humano como ente ético e suas tremendas consequências, até mesmo a morte, que o acompanham.

 

 

Zadie Smith e seu Dentes Brancos

15 de fevereiro de 2012

Zadie Smith nos mostra uma atual e conturbada Inglaterra multirracial, multi-religiosa, uma verdadeira salada étnica, política e social . Mas, nem por isso, menos racista, preconceituosa ou intolerante. Saga, epopéia, épico, são algumas das palavras utilizadas pela crítica internacional para se referir a “Dentes Brancos” em todos os lugares onde foi publicado.

Todas elas se aplicam. “Dentes Brancos” é um portentoso épico histórico-cultural de uma Inglaterra contemporânea, carregado de humor, sátira, aventura e respeito humano. Como isso pode ter sido feito por uma escritora iniciante, com toda a força, reflexão e profundidade de alguém que já escrevesse por décadas, é quase inimaginável. O máximo que Zadie Smith havia escrito foram alguns contos publicados em revistas da universidade. Na verdade, ela mesma contou que, dos cinco aos quinze anos, seu sonho era se tornar atriz de filmes musicais. Nunca escreveu muito e isso certamente não era o eixo de sua vida.

Quando se tornou patente de que nunca seria uma atriz, muito menos de musicais, e começou a procurar outras alternativas, entrou para a Universidade de Cambridge, onde estudou Literatura Inglesa. Mais do que uma técnica de escrita (ela não tem, até hoje, nenhuma disciplina literária, não possui um horário específico nem se impõe um tempo para escrever), o estudo acadêmico lhe valeu mais pela carga de leitura (ela leu muito, de autores clássicos a contemporâneos) e diz que essa foi sua verdadeira escola. Começou a desenvolver a idéia para um conto que descambou para uma novela, tinha oitenta páginas e sem um horizonte para terminar. Através do entusiasmo e incentivo de amigos que leram estas páginas, tomou coragem e fôlego para escrever um romance.

E que romance! O plano abarcado por ele compreende algumas décadas da história mundial centralizadas em um pequeno espaço do planeta, na Inglaterra, mais especificamente na zona norte de Londres. Gira em torno de uma improvável e profunda amizade entre um típico e estúpido inglês de classe média com um indiano (aliás, bengali), membro de uma ancestral, respeitável e decadente família oriental, perdida nas brumas do império inglês.

Eles se conhecem no meio da Segunda Guerra e só tornam a se encontrar trinta anos depois quando Archie Jones é salvo do suicídio por um muçulmano (bem, não foi exatamente por razões humanitárias:  Archie havia estacionado no pátio de um açougue e o dono achava que um suicídio bem no local de carga e descarga das carnes não seria muito bom para os negócios). Com uma nova oportunidade na vida, Archie encontra uma comunidade hippie e, no mesmo dia, conhece Clara Bowden, uma negra de família de origem jamaicana cuja mãe é uma fervorosa Testemunha de Jeová que está esperando pelo fim do mundo. Ele tem quarenta e sete anos e Clara, dezenove. Duas semanas depois, ela se torna sua segunda mulher (a primeira mulher de Jones havia sido um dos motivos de sua tentativa de suicídio).

Samad Miah Iqbal é um bengali (que, como todo mundo sabe, é bem diferente de ser indiano), possui um dos braços inutilizados por causa de um ferimento de guerra e, apesar de ser de uma família tão ancestral e respeitável, nunca conseguiu outro emprego fora o de garçom de um restaurante indiano. Seu casamento com a feroz e decidida Alsana foi arranjado antes mesmo dela ter nascido.

Estes são os anos 70, repletos de contra-cultura, conflitos sociais, raciais e religiosos. Zadie Smith faz outro pulo temporal, desta vez para o final da década de 80 e começo de 90 e amplia ainda mais o leque. E aqui teremos o conflito de gerações com a incapacidade de compreensão dos tempos modernos por parte de Jones e Samad e as dificuldades de relacionamento com os filhos adolescentes. Aqbal e Alsana têm filhos gêmeos e profundamente distintos em gênio e aspirações e Jones e Clara com Irie, uma bela filha que se envolve com um dos gêmeos. Nisso tudo, Samad começa a se envolver seriamente com sua religião ao mesmo tempo em que se apaixona pela loiríssima professora de seus filhos. E entra em cena o cientista judeu Marcus Chalfen. E por aí vai.

Zadie Smith nos conduz com uma segurança impecável por onde deseja. Todos os seus personagens são tão demarcados e bem descritos, com sua falhas, problemas de caráter e limitações, que os sentimos próximos e reais. Há cenas de um terror pessoal profundos como quando eles matam um francês nazista na Segunda Guerra. E cenas de uma sátira feroz e corrosiva como quando Jones não percebe do cerco racista que o envolve por causa de Clara, tão alegre está com o nascimento de sua filha.

E cenas de um humor desbragado, divertido e saudável. É impressionante como Smith consegue rechear seu livro de frases, ditos, pensamentos.

Samad seguiu a voz até o banheiro e deparou com Millat imerso até o queixo na rósea espuma suja na banheira, lendo VIZ.

-Ô, pai, superlegal. Lanterna. Ilumina aqui para eu poder ler.

-Esquece – Samad arrancou o gibi das mãos do filho – Tem um puta vendaval soprando lá fora e a doida da tua mãe pretende ficar plantada aqui dentro até o telhado desabar. Saia da banheira. Quero que você vá até o barracão buscar madeira e prego para a gente poder…

– Mas, abba, tô peladinho da silva!

-Não me venha com detalhes… estamos em uma emergência“.

Impagável o momento quando Millat entra em crise em suas convicções religiosas e, portanto com sua necessidade de abandonar antigos prazeres ocidentais, principalmente os filmes do Robert de Niro e os da Máfia em geral. Ele até tenta adaptar em sua mente a abertura de “Os Bons Companheiros” com a frase dita por Ray Liotta (“Tanto quanto me lembro, sempre quis ser um gângster“), mas o resultado (“Tanto quanto me lembro, sempre quis ser um muçulmano“) não o convence.

Zadie Smith nasceu em 1975 e tinha somente vinte e quatro anos quando escreveu “Dentes Brancos”. Já foi comparada a alguns autores como Salmon Rushdie ou V. S. Naipaul e até mesmo a Dickens! Tudo isso é uma grande bobagem, pois o que seu livro mais demonstra é justamente uma voz que nasceu forte e muito particular.

Seu segundo livro, “O Caçador de Autógrafos”, foi no entanto bem menos entusiasmante. Embora mantenha a prosa afiada, faz um breque abrupto no ritmo e muda, trabalho diferentemente seu estilo, busca novas vias, que ao meu ver não foram bem sucedidas. Ao contar a história de um homem branco judeu que negocia ou contrabandeia autógrafos, autênticos ou nem tanto, de celebridades, Zadie tentou sair das classificações simplistas e limitadoras. Como ela disse, não quer ser conhecida como uma “escritora negra” ou “oriental”, mas simplesmente como Escritora. Mas, pesou a mão, e se perdeu um pouco. Ou, quem sabe, a experiência com ‘Dentes Brancos’ tenha sido tão interessante que apagou um pouco o brilho do seu livro imediatamente posterior; talvez seja necessário relê-lo agora, quando se passou um bom tempo do seu lançamento. Preciso fazê-lo.

Zadie Smith está bem ativa. Além do seu terceiro romance (‘Sobre a Beleza’, do qual nada posso dizer), escreve textos e artigos para vários jornais e revistas. Independente do que faça daqui por diante, no entanto, “Dentes Brancos” já é, sem dúvida alguma, um clássico da literatura moderna.

(texto revisto e atualizado, publicado originalmente pelo iGLer)

 

 

 

Hoje é dia de Baianas!

10 de fevereiro de 2012

da divulgação: “Com o lançamento de ”As baianas” (Casarão do verbo, 2012), seis escritores envolvem o leitor com histórias que apresentam vigorosas personagens femininas, oriundas de seis bairros soteropolitanos: Barris, Cabula, Vitória, Lapinha, Ribeira e Ondina.

O projeto, inspirado no célebre livro de Sérgio Porto, “As cariocas”, passa longe de uma simples reverência ao famoso cronista e escritor. São seis olhares distintos sobre cenários e personagens igualmente peculiares, e com a dicção e o estilo de seus autores, bem diferentes entre si e ainda mais de Sérgio Porto. Não podia ser diferente, afinal de contas quase meio século separa um livro do outro, e como disse Camões: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Se o leitor não é o mesmo de duas gerações atrás, também os livros tiveram que se adaptar aos novos tempos.

Em “As baianas”, a mulher baiana comparece sem apelos de caricatura e estereótipo. Antes de tudo, são mulheres diversas. E esta diversidade escapa dos relatos e alcança a capa, em duas versões, para o leitor escolher a que está mais de acordo com a sua expectativa e a sua vontade.

as 'baianas': Carlos Barbosa, Elieser Cesar, Gustavo Rios, Lima Trindade, Mayrant Gallo, Tom Correia

Integram o volume: Carlos Barbosa (A putinha da Vitória), Elieser Cesar (A guerreira da Lapinha), Gustavo Rios (A noivinha do Cabula), Lima Trindade (A piriguete de Ondina), Mayrant Gallo (A Bonnie dos Barris) e Tom Correia (A santinha da Ribeira). 152 páginas de puro deleite e literatura! Uma variedade de enredos e ângulos, dos quais emerge uma Salvador extremamente contemporânea, urbana e repleta de singularidade, sob o olhar de seis escritores seduzidos por suas personagens.

A orelha é do jornalista Xico Sá, e o posfácio ficou a cargo do escritor e presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. O volume inclui ainda um breve ensaio fotográfico em P&B, assinado por Gal Meirelles. São seis imagens, cada uma abrindo um dos contos.

LANÇAMENTO
As baianas
10 de fevereiro (sexta-feira), 19h
Livraria Cultura (Shopping Salvador)

Christopher Hitchens e o Julgamento de Kissinger

16 de dezembro de 2011


Henry Kissinger, prêmio Nobel da Paz em 1973, secretário de Estado dos EUA durante os governos de Nixon e Gerald Ford, atual consultor político internacional, empresário muito bem-sucedido e escritor com artigos publicados em revistas e jornais do mundo inteiro, já passou por alguns apertos. A cada dia, novos e esclarecedores documentos estão sendo levantados e mais países estão contestando sua antiga e poderosa atividade como secretário de Estado.

Na apresentação d´O Julgamento de Kissinger, de Christopher Hitchens, publicado no Brasil pela Boitempo, Giancarlo Summa lembra que, em maio de 2001, enquanto passava pela França, Kissinger foi abordado pela policia francesa para prestar esclarecimento sobre a morte de cinco franceses durante a ditadura de Pinochet no Chile. A resposta de Kissinger foi sair do país no mesmo dia.

Um juiz argentino intimou-o a discutir sua participação na tristemente famosa Operação Condor; tribunais chilenos, sobre a morte do jornalista norte-americano Charles Horman (cujo seqüestro e assassinato formaram o assunto de um dos mais contundentes filmes políticos de todos os tempos, “Missing” de Costa-Gavras); o jornalista e professor Emir Sader comentou que “a própria Corte Federal dos EUA acusa Kissinger pela´execução´ sumária do general chileno René Schneider”.

Acusações sérias? Bom, ainda não chegam perto das que Christopher Hitchens realiza neste livro. Para o autor, Kissinger deveria estar sentado ao lado de Pinochet, o sanguinário ditador chileno, e junto com o ditador sérvio Milosevic, respondendo por crimes contra a humanidade da mesma forma como os nazistas julgados pelos tribunais internacionais.

Kissinger nunca primou pela delicadeza em relação ao comportamento norte-americano em sua luta contra os “inimigos”, fossem eles quais fossem, embora sempre houvesse uma “predileção” pelos comunistas. Sua famosa frase “Não vejo porque temos que ficar parados enquanto um país se torna comunista em razão da irresponsabilidade de seu povo”, define toda sua personalidade e sua atuação como político. Foi gestor consciente da “realpolitik”, onde não há muitas considerações sobre a ética e a moralidade, principalmente quando elas atrapalham os interesses norte-americanos.

Mas não é contra isso que Hitchens se levanta. Ele não está contestando as possíveis atitudes dúbias de algum estadista que acaba tendo que tomar decisões moralmente complicadas por conta de algum interesse nacional maior.  Hitchens não está fazendo nenhuma discussão filosófica ou de oposição política. Ele é direto e objetivo: Kissinger é um criminoso, mesmo que bancado pela mais poderosa nação do planeta e, dessa forma, deve ser julgado. Este livro foi escrito, portanto, como uma peça dessa acusação.

Hitchens assume uma postura clara desde o prefácio: ele é adversário político de Kissinger, sim, mas está se restringindo a fatos e atitudes que sejam criminalmente caracterizados. Quanto a sua posição, não há duvidas. Comentando sobre os resultados da guerra do Vietnã, ele diz:

“Isso é o que custou promover Henry Kissinger da condição de acadêmico medíocre e oportunista a potentado internacional. As marcas estavam lá desde o momento inaugural: a adulação e a duplicidade; a adoração pelo poder e a ausência de escrúpulos”, “e os efeitos distintos também estavam presentes: os incontáveis mortos; as mentiras oficiais e oficiosas sobre o custo; a pesada e pomposa pseudo-indignação diante de perguntas indesejáveis”.

Hitchens não se importava com a possível ridicularização de sua obra. Ele encara de frente: “Eu já posso ouvir os guardiões do consenso tentando classificar isso como uma ‘teoria da conspiração’. Aceito o desafio, com prazer”, para, logo em seguida, desfilar uma avalanche de documentação, citações, testemunhos, notas, transcrições de gravações, etc.

Quais são, então, as acusações? Ele define seis:

– genocídio deliberado de civis na Indochina;

– conluio deliberado no genocídio e em posteriores assassinatos em Bangladesh;

–  suborno e planejamento de assassinato de um oficial graduado numa nação democrática – o Chile – com a qual os Estados Unidos não estavam em guerra;

– envolvimento pessoal para assassinar o chefe de Estado numa nação democrática – Chipre;

– promoção e facilitação de genocídio no Timor Leste;

– envolvimento pessoal em um plano para seqüestrar e assassinar um jornalista residente em Washington.

Nenhuma dessas acusações é novidade. Kissinger já está respondendo ou fugindo dessas questões há algum tempo. O mérito de Hitchens é o de aproveitar todo um material novo, como a documentação liberada em 2000 pelo FBI, por exemplo, e de conseguir apresentá-lo de uma forma direta e limpa, “traduzindo” para a linguagem comum o pesado jargão jurídico e burocrático. Além de revisar todo o material antigo já existente.

Não são afirmações levianas, portanto. Jornalista acostumado com a polêmica, disse que desde que se radicou nos Estados Unidos na década de 80 (ele é britânico, nascido em 1957), se sentia obrigado a dizer a verdade sobre essa sinistra figura. Foi-se armando, coligindo dados e informações até escrever dois artigos que formaram a base deste livro. (Antes disso, já havia criado uma enorme polêmica quando “ousou” investir contra uma pessoa que ninguém julgaria passível de recriminação: Madre Teresa de Calcutá. Bateu forte, realizando uma profunda desmistificação da vida e da obra dela e demonstrando o quanto suas pretensas “santidade” e caridade foram conscientemente construídas. Qual será a editora brasileira que traduzirá e publicará este livro, afinal?)

Quais são as possibilidades, porém, de que Kissinger venha a ser seriamente questionado e tenha que responder pelos seus atos e, quem sabe, sentar em qualquer tipo de banco de tribunal? Hitchens acredita que está mudando a atitude internacional perante as “grandes figuras políticas”; está se perdendo o respeito irrestrito a sua impunidade parlamentar. Ele cita o caso justamente dos agravos de Pinochet e Milosevic.

Acrescenta que o próprio Kissinger reconhece o perigo por que está passando. Não foi à toa que escreveu um livro em que discute justamente a questão da “doutrina universal”, cujo titulo “Does America Need a Foreign Policy?” (A América precisa de uma política externa?) já diz tudo. Por outro lado, ele até hoje não devolveu cerca de cinco mil páginas de material secreto que retirou das gavetas do governo quando deixou seu cargo de secretário de Estado, em 1977, ignorando solenemente todas as instâncias jurídicas.

Tenho minhas dúvidas se algum dia Kissinger possa ser efetivamente condenado (ou, sequer, julgado). Sua conduta está tão imbricada na razão de ser do império norte-americano, sua arrogância e prepotência representam tão bem a própria arrogância e prepotência desse país, que julgar Kissinger é o mesmo que julgar o próprio imperialismo. Na época do lançamento desse livro, o jornal A Folha de São Paulo, por exemplo, publicou um artigo seu (“Intervir no Iraque surge como imperativo”, 11 de agosto de 2002) que demonstra o quanto ele está sintonizado com o público norte-americano.

O livro de Hitchens é uma bela tentativa no sentido de ajustar as contas. Forte, poderoso, instigante. É um ataque apaixonado, decidido, mas ao mesmo tempo, lúcido e equilibrado. Indispensável para qualquer pessoa com um mínimo de coerência política e interessada na justiça.

 

obs – texto revisto e atualizado, publicado originalmente pelo iGLer (se não me engano) e republicado agora por conta da morte de Hitchens, cujas polêmicas farão imensa falta

obs2 – a pergunta que eu fiz no texto ainda continua válida: agora com a morte de Hitchens, alguma possibilidade de, afinal de contas, publicarem seu livro sobre Madre Tereza??

 

 

 

Os três mosqueteiros

27 de novembro de 2011

Os franceses são um povo meio complicado. Depositária de uma herança que ajudou a moldar a mentalidade, o pensamento, a cultura do planeta, principalmente do seu lado ocidental, a França sempre foi um viveiro de pensadores, cientistas e artistas das mais variadas espécies: pintores, músicos, escritores, cineastas, etc. Criadora de movimentos culturais e políticos com repercussões mundiais e permanentes. Além de abrigar manifestações do mundo inteiro: a França foi a segunda pátria para jazzistas norte-americanos que fugiam do racismo em sua terra natal e recebiam, muitos pela primeira vez, respeito, admiração e espaço para trabalhar e criar; os franceses foram os primeiros também a reconhecer Hitchock como um verdadeiro artista, acolheram os filmes noir de Hollywood e, ao mesmo tempo, montaram seu reverso, a Nouvelle Vague. Enfim, essa lista poderia se estender ad infinitum.

Por outro lado, é a mesma França que concede a Legião de Honra para um Paulo Coelho e sua “inestimável contribuição para a humanidade”. Bom, isso em si não seria um verdadeiro crime (já que Paulo Coelho “enfeitiçou” o planeta inteiro), não fosse um pequeno fato ocorrido no final de 2002: Em novembro desse ano, os restos mortais de Alexandre Dumas começaram a ser transferidos de Villers-Cotterêts para o Panteão em Paris. O fato pode ser pequeno, mas seu significado é tremendo.

Para se ter uma idéia apropriada, é preciso saber que o Panteão abriga ídolos franceses centenários, personalidades que carregam o próprio significado de sua identidade nacional, pessoas como Voltaire e Vitor Hugo. Ser depositado ali quer dizer que Dumas foi colocado no mesmo nível  desses outros gigantes. Como disse Gilles Lapouge na ocasião: “O que espanta não é o fato de Alexandre ser admitido no Panteão. O que precisamos dizer é exatamente o contrário: por que o Panteão demorou tanto tempo para acolher as cinzas desse gigante da literatura francesa e mundial?”. Lapouge também dá a resposta que, infelizmente, é muito simples: Dumas sempre foi considerado, pelos franceses, “como um autor de segunda categoria”. O escritor francês mais traduzido no mundo inteiro, cujas obras alcançaram a imaginação e a vivência de gerações inteiras, que ajudou a espalhar e generalizar símbolos da história, da sociedade e da força tipicamente francesas e que era admirado e respeitado por escritores do quilate de um Vitor Hugo e Honoré Balzac, demorou mais de cento e trinta anos depois de sua morte para ser considerado um escritor sério e competente com direito a ficar do lado de autores clássicos!

Depois de um Paulo Coelho receber a tal Legião de Honra e tal.

Foi um francês quem disse que o Brasil não era um país sério.

A literatura de Alexandre Dumas caracteriza-se justamente por uma agilidade narrativa impressionante, com altas cargas de emoção, suspense e ação. Ele não se envergonhava de ser melodramático, sentimental, exagerado. Sua maior qualidade eram os diálogos: rápidos, cortantes, inteligentes, incisivos. Além de serem agradabilíssimos de ser lidos, constituem elementos fundamentais para a trama e por meio deles o enredo é alavancado. Nisso, Dumas continua sendo um mestre indiscutível até hoje. Além do que, o carisma, a empatia e a densidade com que conseguia envolver seus personagens, transforma-os em verdadeiras personalidades que marcam indelevelmente nossa mente.

São romances de aventuras, de intrigas palacianas, de heróis destemidos e de vilões malignos que fazem ferver a imaginação e, acima de tudo (pecado dos pecados!), são divertidos!! Dumas foi desprezado e desdenhado pela intelectualidade porque possuía uma característica que o incapacitava: era popular! Como tal escritor poderia ser considerado “sério”?

A própria vida de Dumas daria um enredo perfeito para algum de seus romances (e certamente passou muita coisa de sua experiência própria para os livros). Começou sua carreira como dramaturgo, já com muito sucesso. Escreveu por volta de quinze peças (pelo menos uma das quais, “La Tour de Nesle”, considerada como uma obra-prima do melodrama francês), mas foi quando se voltou para o romance que ele realmente “estourou”. Ficou famoso e idolatrado, ganhou rios de dinheiro e gastou-os na mesma proporção, com festas, mulheres, viagens, palácios e, portanto, estava sempre envolvido em luxo e dívidas, caçado pelos credores. Possuidor de um ritmo frenético de trabalho, escreveu milhares de páginas. Quando morreu, deixou por volta de duzentas e cinquenta obras. Escrevia tanto e tão rápido que durante um certo tempo pairou a suspeita de que ele, na verdade, pagava uma equipe de secretários para isso e ele só assinava. Intrigas da Academia.

Athos, Porthos, Aramis, capitaneados pelo cativante d’Artagnan,  e o seu brado de guerra e declaração de amizade infinita, o “Um por todos e todos por um”, são conhecidos até mesmo por quem nunca chegou sequer perto do livro. D’Artagnan, o jovem ansioso por aventuras e honrarias, recém-chegado a Paris com alguns trocados na bolsa e cujo maior sonho é se tornar mosqueteiro, é o verdadeiro líder da turma; Athos é o nobre de alma pura que carrega um terrível segredo escondido; Aramis é o galanteador, gosta de armar e participar de intrigas e, ao mesmo tempo sonha em se tornar padre; e Porthos é o Hércules: forte como um touro, íntegro de coração, ingênuo e burro. Os quatro colocam a França de pernas para o ar: se envolvem em uma luta contra a personalidade mais poderosa da época, o Cardeal Richelieu, auxiliam a Rainha em apuros, enfrentam a bela e maligna Milady, a vilã – protótipo de todas as “femmes fatalles” que se seguiram… Tudo isso recheado com um humor escrachado, repleto de frases de efeitos, tiradas memoráveis, cenas inesquecíveis.

O que nem todo mundo sabe é que os quatro realmente existiram. Dumas “chupou” os personagens de um libretinho assinado pelo d’Artagnan, pretensamente escrito pelo próprio. Dumas se apropriou dos caracteres e da trama em geral, enxertou uma certa ambientação histórica, sem tanta preocupação com a veracidade científica, e moldou-os a sua própria vontade (aliás, tal como fazia um outro autor, inglês, um autêntico plagiador que também cometeu o tal pecado de ser popular, fazer sucesso e ser profundo, chamado Shakespeare).

“Os três mosqueteiros” foi o ápice absoluto da carreira de Dumas, apesar de várias outras obras de bastante repercussão como “O Conde de Monte-Cristo”, “A Tulipa Negra” ou “A Rainha Margot”. Ele continuou a história dos heróis por bastante tempo, em “Vinte Anos Depois” e foi até a morte de cada um, em “O Visconde de Bragelonne”, onde inclusive está inserida uma outra aventura famosa, “O Máscara de Ferro”.

Deixe de lado as histórias em quadrinhos, os desenhos de animação, as adaptações infantis. Esqueça os filmes (mesmo os 3D, 4D, 5D) que porventura você tenha assistido; Se ainda não leu “Os Três Mosqueteiros”, está perdendo tempo e marcando passo.

As boas mulheres da China

14 de novembro de 2011

A leitura de “As Boas Mulheres da China” provoca de imediato duas reações que, a primeira vista, podem parecer contrárias e conflitantes. De um lado, há o espanto, a perplexidade, o choque. Estarrecimento. Supresa. Do outro lado, há uma desconfortável sensação de reconhecimento.

Durante sete anos, Xinran manteve um popular programa de rádio onde pela primeira vez as mulheres podiam contar suas histórias, seus problemas e angústias. Na verdade, era a primeira que alguém se dispunha a escutar e fazer com que elas fossem ouvidas. Era uma iniciativa espinhosa e potencialmente perigosa: uma palavra equivocada, um pensamento que significasse algum tipo de crítica, mesmo que leve, ao governo ou o partido comunista (o que, no caso da China, obviamente sáo a mesma coisa), ou que resvalasse para um dos inumeráveis assuntos proibidos, podia levar a destruição de uma carreira ou mesmo a um julgamento sumário. O programa durou de 1989 a 1996.

Xinran vai, cuidadosamente, colocando estas vozes no ar. Primeiro, como leitura das centenas de cartas que recebia diariamente. Depois, conversando com a próprias mulheres, ao vivo. É quase incompreensível saber como Xinran não foi presa e condenada. As histórias que essas mulheres contavam não eram nada doces e simpáticas.

Ao contrário. Tratam de incesto, rapto e sequestro domiciliares, estupro, sofrimento, dor, tortura, negligencia, casamentos arranjados politicamente. Brutalidade quase sempre familiar, geralmente cometida pelo pai, tio ou parentes, líderes comunitários e políticos, membros do partido. A ignorancia sobre ridículos fatos básicos sobre sexualidade é absurdamente imensa. Xinran dá um exemplo de si mesma quando, aos 22 anos ficou em crise porque não sabia se havia ficado grávida por ter andado de mãos dadas com um homem.

Atitude que, por pouco, não invibializaram o projeto. Sua idéia, de tentar entender a alma da mulher chinesa, era ridicularizada: a alma da mulher era impenetrável e incompreensível. E, depois, afinal de contas. quem se importaria com isso?

A audiência foi a resposta. O programa começou a ser ouvido por milhares de pessoas; centenas de histórias eram despejadas em sua mesa, diariamente, tornando-a uma verdadeira celebridade. Nem Xinran tinha consciencia da profundidade do que havia iniciado.

Histórias como a da menina estuprada pelo pai desde quando tinha 11 anos de idade que só encontrou alívio quando foi internada e o único toque gentil que sentiu em sua vida foi pelas patas de uma mosca. Sua única felicidade foi quando soube que iria morrer e não retornaria jamais para a casa do pai.

Ou a do velho que raptou uma garota de 12 anos para ser sua mulher e a acorrentou na cama para que ela não fugisse. Toda a aldeia sabia e não se importava, pois essa é uma prática tão comum… Somente uma pessoa se importou e mandou uma carta anônima para Xinran, pois a menina estava para morrer por causa dos ferimentos causados pelas correntes. Ela implorava, no entanto, para que Xinran fosse discreta, pois se descobrissem quem havia denunciado, ela seria escorraçada da aldeia. Essa menina Xinran conseguiu ajudar, mas quantos outros casos haveria pela China inteira?

Em suas pesquisas, em suas entrevistas com mulheres pelo país, Xinran visita o presídio de Hunan para conhecer Hua’er, presa por promiscuidade ou, em palavras oficiais “delitos sexuais e coabitação ilegal”. A história da dizimação de sua família promovida na época da Revolução Cultural e o estupro coletivo que sofreu quando era criança por vários guardas vermelhos revolucionários, não pôde, evidentemente, ir para o ar.

Em 1976, a cidade de Tangshan sofreu um terremoto que matou trezentas mil pessoas. Estas mortes se deveram não somente ao impacto imediato do terremoto, mas, por causa da precariedade das comunicações na época, o resto da China sequer soube do que aconteceu por dias. Na verdade, só tomaram conhecimento do fato por conta de entidades estrangeiras que haviam registrado o abalo sísmico. A demora na ajuda, a desorganização e a falta de equipamento necessário certamente pioraram uma situação já terrível. As histórias das mulheres do desastre de Tangshan, porém, não cabem nesta resenha.

E vou parar com os exemplos. Mesmo porque, o livro de Xinran não é um simples relatório. A dor, as lágrimas e o crescente choque, a descoberta de horrores somente vislumbrados anteriormente, percorrem cada página, cada parágrafo. Não é um documentário. É um longo desabafo, uma forma de Xinran prestar alguma forma de auxílio àquelas mulheres, uma forma de fazer com que suas vozes continuem a serem ouvidas de alguma forma. E nisso tudo está a vida da própria Xinran.

Até aqui falei do choque. O segundo sentimento, o do triste reconhecimento, pode ser exemplificado quando se sabe que existem meio milhão de crianças, com idades entre 12 e 15 anos, que trabalham como domésticas no Brasil. Ou quando sabemos que o tráfico de mulheres e crianças no mundo movimenta em torno de sete bilhões de dólares por ano sendo que no Brasil é a terceira maior fonte de renda ilícita, perdendo somente para o tráfico de armas e o de drogas. As adoções ilegais, o turismo sexual, o abuso sexual de criancas por membros da família, principalmente o pai ou tios ou parentes … Aqui não houve uma Revolução Cultural chinesa e, formalmente, somos uma democracia, certo?

Atualmente, Xinran vive em Londres, casada com um inglês, tem um filho. As marcas são profundas, no entanto:

Ainda hoje, ela se sente incomodada quando chega em casa e vê seu marido fazendo o jantar ou lavando a louça. Precisa lutar com uma vozinha na sua cabeça que fica dizendo que Ela é a mãe, Ela é a esposa, Ela é quem tem essas obrigações …

Xinran responde perguntas sobre seu novo livro, “Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida”

 

 

A Caixa Preta de Amóz Oz e ‘Israel é uma decepção’

10 de novembro de 2011

Amóz Oz é uma das prova vivas, caso fosse necessário, de que um verdadeiro escritor, ao tratar do que realmente conhece, de sua terra, de sua gente, consegue falar de temas universais.

Oz é reconhecido como um autor não só judeu, não só israelita, mas eminentemente israelense. Nascido em 1939, em Jerusalém, sua vida está diretamente imbricada com a construção e sobrevivência do Estado de Israel, o qual sempre defendeu. Foi soldado da reserva em todas as batalhas de fundação e manutenção do pequeno país, como a Guerra dos Seis Dias em 1967 e o das Colinas de Golan em 1973. Mas, ao mesmo tempo, sempre entendeu que havia possibilidades de convivência pacífica entre as nações desde que houvesse respeito mútuo. Para Oz, há condições para que existam tanto um estado judeu quanto o palestino.

Logo que possível, deixou o exercito e engajou-se em todos os movimentos pacifistas; foi um dos fundadores do grupo “Peace Now” em 1977 e é uma de suas figuras públicas mais conhecidas; escreve artigos em defesa da paz em várias revistas e jornais do país e do mundo. Em 1992, ganhou um dos mais importantes prêmios alemães dedicado as pessoas que militam a favor da paz, o German Friedenspreis; e, 1997, ganhou do presidente francês Jacques Chirac,  a Legião de Honra.

Por outro lado, é um grande cultor das tradições e da cultura judaicas. Durante muitos anos, viveu nos kibutz, sem nenhum luxo apesar dos seus rendimentos; sempre escreve seus livros primeiro em hebraico; até hoje continua dando aula de língua e literatura hebraicas na Universidade Ben-Gurion; durante um ano morou e deu aula nos Estados Unidos como professor convidado. Em 1991, foi eleito como membro pleno da Academia de Língua Hebraica.

Isto por si só não explica sua ascensão como escritor e nem o sucesso dos seus livros pelo mundo inteiro. Nem o fato de ser traduzido para mais de trinta línguas, publicado em mais de quarenta países, detentor de vários recordes de vendagem em Israel, aclamado por críticos e por milhares de leitores e xingado e criticado, tanto por suas posições quanto pelas suas qualidades literárias por outros tantos críticos. A cada nova obra ou novo artigo, a polêmica se reinstala.

“A Caixa Preta” é um dos seus livros mais reconhecidos. Desde quando foi lançado em 1987, (quando centenas de exemplares eram vendidos por dia pelas ruas de Israel, disputados a tapa, e permaneceu assim por muito tempo até alcançar um impressionante número de setenta mil livros vendidos, considerando-se uma população de pouco menos de quatro milhões de pessoas), foi considerado tanto como uma obra-prima da literatura mundial quanto lixo que deveria ser jogado na fogueira.

Basta uma primeira leitura para entender como é possível provocar emoções tão exarcebadas: como um verdadeiro cirurgião, ele deixa expostos todos os nervos da relação humana. É fácil compreender como algumas pessoas não conseguem se reconhecer ou assumir que aqueles personagens são cópias fieis de uma realidade, de sua própria realidade, interna, profunda, verdadeira. “A Caixa Preta” é um mergulho nas dores de relações quebradas, de anseios interrompidos, de esperanças frustradas. O título faz referencia aos equipamentos de registro dos aviões, utilizados quando de algum desastre para se saber de todos os detalhes do acontecido e tentar entender o que aconteceu.

O “desastre” neste caso é o final do casamento de Alec Guideon e Ilana. Oz abre para nós a caixa preta desta separação através da correspondência trocada entre os dois e as pessoas que os circundam. Sete anos depois do final de um casamento marcado pelas brigas, desentendimentos, traições e luta pela guarda do filho (do qual ninguém tem certeza absoluta de que Alec seja realmente o pai, pois tanto ele quanto Ilana se recusam a fazer o teste de DNA), Alec está morando nos Estados Unidos, desfrutando da herança do pai e de sua fama como intelectual e historiador e Ilana casou-se novamente com um líder tradicionalista e de direita.

O motivo para que Alec e Ilana voltem a se falar é o filho, Boaz, que se revela um rapaz problemático, violento e agressivo, sem perspectivas de futuro, forçando Ilana a pedir ajuda para Alec. É o suficiente para que toda a amargura, frustrações e defeitos de caráter ou comportamento voltem a tona. Cada carta destila ódio, desespero, incompreensão. Uma autêntica lavagem de roupa (moral, pessoal, íntima) da qual nós, leitores, participamos como verdadeiros voyers perplexos perante a profundidade de sofrimento que cada ser humano é capaz de aguentar. Ou provocar.

Cada página do livro de Oz é um verdadeiro petardo. A cada momento, há uma revelação sobre algum aspecto deixado obscuro em uma carta anterior; a cada instante, somos obrigados a fazer uma reavaliação sobre aquilo que sabíamos (ou pensávamos saber). Um comentário feito pela escritora e blogueira  Tatiana Carlotti (do blog ‘Atalhos Urbanos‘) durante uma conversa sobre este livro é completamente pertinente: é o modo magnífico como Oz trabalha os silêncios. Através de toda a verborragia pelo qual somos inundados pelas cartas, há “buracos”, verdades escondidas ou meio-veladas que vão se revelando com muito custo, com fórceps, por cada correspondente. O leitor fica em suspensão eterna, em verdadeiro suspense, esperando pela próxima carta que trará, ou deveria trazer, uma luz sobre aqueles aspectos que parecem tão assentados.

Impressionante também é como Oz assume cada personagem. Sem grandes floreios ou enormes frases de efeito, nós sentimos cada personalidade completamente diferentes um do outro, sem recorrer a truques de repetição de falas para caracterizar uma pessoa. Parece incrível que tenha sido um homem quem no final das contas tenha escrito esta carta, por exemplo, de Ilana, datada de 19/4/1976:

A carta começa com ela reconhecendo suas próprias mentiras, seu “sangue de puta” que fez com que traísse Alec com vários homens e o quanto, no entanto, apesar de tudo o que eles tinham vivido e brigado, ele continuava sendo uma figura importante, fundamental, primordial, a ponto de ela dizer “Você foi e continua sendo meu marido. Meu senhor e mestre. Para sempre. E na vida após a vida, Michel” (o atual marido), “segurará o meu braço para me conduzir ao altar para a cerimônia de casamento com você“.

Pois bem, a bomba vem logo: “Como um cavaleiro que matou um dragão, escrevi há um momento. Mas não se apresse em comemorar. Sua arrogância é prematura, meu senhor: você é o cavaleiro louco que matou o dragão, e depois matou também a donzela e por fim destroçou também a si mesmo. Na realidade, você é o dragão. E este é o momento mais delicioso para mim: revelar que Michel-Henri Sommo é muito melhor do que você na cama. Em tudo que se refere ao corpo, Michel foi muito bem dotado desde que nasceu. Na verdade, não apenas Michel. Quase todos eles poderiam ter ensinado uma ou duas lições a você. Até o rapaz albino que era seu motorista no Exército: casto como um cabrito, talvez no máximo dezoito anos, culpado, assustado, mais submisso que talo de grama, tremendo todo, os dentes batendo, quase implorando que eu desistisse dele, quase em lágrimas, e de repente começou a esporrar antes sequer de me tocar, soltou um uivo de cachorrinho e, mesmo assim, Alec, no instante em que os olhos assustados do rapaz me lançaram um brilho puro de gratidão, de admiração, de adoração sonhadora, inocente como o canto dos anjos, isso fez meu corpo e o meu coração estremecerem mais do que você conseguiu em todos os nossos anos juntos.”

Creio que dá para sentir o “clima” de “A Caixa Preta”. E fica perfeitamente entendível por que qualquer rabino tradicionalista de Israel deve sentir horror de pegar um livro de Amóz nas mãos.

“Israel é uma decepção”, diz Amós Oz

De São Paulo 10/11/2011 – 00h05

“Israel é uma decepção”, disse o escritor Amós Oz, na noite desta quarta (9), diante do público que lotou os 1.010 lugares do teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo.

No Brasil para participar da celebração de 25 anos da editora Companhia das Letras, Oz, mais importante escritor israelense da atualidade, falou com um toque de humor da fundação de seu país, ocorrida em 1948.

“Israel nasceu de um sonho, e tudo que nasce de um sonho está destinado a ser uma decepção. A única maneira de manter um sonho intacto é nunca vivê-lo”, disse.

Os Cães de Riga

1 de novembro de 2011

Um bote é encontrado vagando pelo mar, nas costas de uma pequena cidade da Suécia, com uma carga macabra: dois homens mortos. A primeira constatação é de que não são náufragos de algum acidente marítimo: estão bem vestidos, com ternos caros, tiveram portanto uma boa vida. Foram baleados, assassinados, jogados no bote e abandonados. A segunda constatação: antes de morrerem, também foram barbaramente torturados. A terceira e não menos surpreendente constatação: são russos ou pelo menos de algum país da extinta cortina de ferro. Difícil calcular de onde vieram, pois os descobridores dos corpos não quiseram se identificar; afinal, eram contrabandistas e sua relação com a lei era um tanto ou quanto ‘delicada’. O crime agita a vida da cidade, faz a sensação do noticiário, mobiliza a Divisão de Crimes Violentos, a de Entorpecentes e o próprio Ministério do Interior, além de complicar a rotina do inspetor Kurt Wallander.

A princípio, tudo pareceu estar se encaminhando para uma solução rápida quando a identidade dos mortos é feita: eram bandidos, membros da máfia russa que agia na Letônia. Nada mais fácil, então: um policial letão vem, ajuda um certo tempo na investigação e leva os cadáveres. E tudo terminaria aqui para os suecos se esse mesmo policial, logo ao chegar em sua terra natal não tivesse sido assassinado. Assim, o inspetor Wallander é convocado para cooperar Em Riga, na própria Letônia!

Política, intriga internacional, espionagem, lugares ‘exóticos’ e enredo de romance policial são elementos para bons livros, sendo que um de seus mestres foi Eric Ambler. Países estrangeiros dos quais pouco conhecemos e cuja realidade pode ser entrevista através deste gênero estão cada dia mais populares e constantes, perfeitamente ‘globalizados’, mas já tínhamos há algum tempo atrás um Jan Willem Van de Wetering cujas aventuras se passavam em uma incomum e desconhecida Holanda. Aliás, são dois autores há muito fora de catálogo e bem que poderiam ser lembrados e reeditados.

Ambler e Van de Wetering são referências e lembranças obrigatórias ao se ler este livro de Henning Mankell. E a comparação não é nada favorável para Mankell. Apesar de mexer com tantos elementos estimulantes e instigantes, o resultado é quase nulo. O que poderia ser uma ótima oportunidade para se aproveitar de uma complexa situação política, rica em eventos e desdobramentos e virtualmente desconhecida para os estrangeiros, como o caso da Letônia, vira um pastiche insosso e inverossímil, recheada de clichês e lugares-comuns, quase infantis mesmo. A impressão é que Mankell deve ter feito pesquisas históricas em reportagens da CNN. O que não teria feito Eric Ambler com tal material!

No entanto, independente de qualquer comparação ou generalização, é a própria escrita de Mankell o que mais compromete. A narrativa frouxa, sem vigor, impossibilita que criemos uma verdadeira empatia com o personagem ou que nos emocionemos com suas peripécias, pecado mortal para uma obra que depende justamente das diversas reviravoltas da trama.

Considerando-se somente este “Os Cães de Riga”, fica difícil entender como Mankell faz tanto sucesso em vários países. Talvez só a globalização explique.

 

texto originalmente publicado pelo iG